segunda-feira, 29 de novembro de 2010

escrito XXI

devaneio da fuga
[Parou para pensar. Mas desta vez, para pensar de facto. Nem sempre somos aquilo que imaginamos, “tão pouco mais ou menos”, aquilo que nos imaginam e imaginamos nos outros. Por cada dia que se põem, é aquela palavra dita por aquela pessoa, aquela expressão, aquele olhar, aquele abraço, aquela discussão, aquela amizade, aquele amor, aquele, aquela: não importa, mudamos sem notarmos. E continua a pensar. Odeio quando sou egoísta, odeio quando o aborreço, odeio sentir demais, odeio quando me odeio de manhã, odeio quando sou arrogante, odeio quando a aborreço, odeio quando me odeio de tarde, odeio quando não compreendo a incompreensão dos outros, odeio quando os aborreço, odeio quando me odeio de noite. Odeio-me. Sinto uma certa pena por esta disformidade pessoal]

Fim de tarde. O relógio grita o atraso de uma vida escondida na ilusão. A tarde que se escorre nos olhos. A roupa dobrada na mala por fechar: a indecisão. Fita, mais uma vez, a janela: o pôr-do-sol no amarelo cansado do prédio vizinho. A mala fechada: a partida: a decisão. Na mesa, o bilhete de comboio. Despede-se do quarto, das paredes que guardam as palavras mudas da frustração de uma vida mentida. A mala na mão. O bilhete de comboio no bolso das calças. A decisão no coração. Vou mudar, vou mudar. A porta bate. Dá três voltas na fechadura mesmo sabendo que não volta. Não. Nunca. Nunca mais. Espera o autocarro. A adrenalina de se ver fora de si. Entra no autocarro. Não pensa em nada. É tudo muito confuso. Sai do autocarro: Avenida dos Aliados. A noite enche-se de sombras. Sente a noite escorrer-se nos olhos, trémulos. Abraça a baixa, a calçada, as pessoas cinzentas, os edifícios cinzentos, a praça cinzenta, as pombas, as mulheres que vendem meias de lycra, o senhor do acordeão, o outro senhor das lotarias, as crianças que mergulham no douro, os pedintes, os jardins do palácio, acena com a alma o adeus. A estação de comboio. Desperta: - o comboio do cais cinco, com destino a Fuga, parte dentro de cinco minutos. Caminha para a porta, pensa, se conseguir fumar um cigarro e o comboio ainda não tiver partido é porque estou a tomar a melhor decisão. Ri-se. Fuma um cigarro, enquanto se despede da estação de S. Bento, enquanto se desculpa. O comboio vai partir. Entra. Ás vezes é tão mais fácil fugir.


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