quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

escrito XXXIII

preocupado, o mar perguntou ao rapazinho, o que tens, estás triste?

por vezes custa-me viver à superfície das coisas que amo. 

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

escrito XXXII


[ não queria temer pelo pior, nem pelo que o futuro pode ou não vir a trazer ]


António: acorda para mais uma manhã que se faz para morrer. É esta a penitência das coisas que nascem. A morte. Um fim antecipado. Ele sabe. Todos sabemos. O mundo inteiro sabe. Encerra-se nesse conhecimento a beleza dos momentos, das vivências, do amor: essa arma que sente adormecer no frio da noite. A importância de tudo aquilo que não é perene. Uma beleza que se encerra numa intensidade sem grau de significação. Por não ser modesta. No fim, por se saber finita. António encontra-se nesse pequeno espaço, nesse intervalo daquilo que é e vai deixar de ser. No intervalo da manhã, da tarde, da noite. António é o intervalo do que nasce para morrer. Porque teme. António é a intensidade do que se faz, para não se ver, no que foi. A aguarela que se escapa por entre a rugosidade do papel.


NÃO EXISTE MATEMÁTICA PARA ISTO TUDO
que tudo isto, não é mais, do que uma ilusão que me impregnaste no olhar: o futuro.


sinto a manhã terminar-me no seu espaço, numa insuficiência de não lhe poder fazer parte


domingo, 21 de outubro de 2012

escrito XXXI


j.

quero contar-te do espaço que me ocupas. como me deformas o peito: que engorda, que se enche, que se rasga: porque te respiro. quero contar-te tudo, para que me entendas. falar-te da novidade dos meus dias agora que acordei. das luzes, das cores, das texturas, dos cheiros frescos da manhã, dos sons, das formas, de ti, de mim: de nós. deste espetáculo berrante sem plateia. quero falar-te das coisas que me assustam, porque não as compreendo. porque nunca as vi. uma agnosia sem jeito, sem competências. quero contar-te tanta coisa. Mas por agora, respiro-te, respiro-te tanto, num ritmo incessante: num ritmo de carrossel de feira, de redemoinho salgado, de mil cavalos selvagens que galopam vendados sem direcção. 

escrevo-te desta caravela sem leme, sem norte. escrevo-te para que me encontres, para que nunca me percas.

sinto-te: porque fazes parte de mim: porque nos respiramos. e é este o espaço que me ocupas. o que me preenches. 

e já não me distingo, porque nos misturamos. 


quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Coisas de outras coisas

Hoje, não vou escolher nenhuma música para me empurrar contra as palavras certas que escolheria para contar-me da forma menos clara que encontrasse, através de floreados linguísticos, ou qualquer outro tipo de barroco. Nenhuma personagem encarnará aquilo que penso, para que, inadvertidamente, o possa mostrar que não o seja eu a pensar. E hoje penso:

qual o peso das coisas num universo de entropias?

Não, não se trata de um discurso de autocomiseração, tão pouco o é de génio, e de nada se aproxima da introspecção ou qualquer alusão hermital que ao acto se assemelhe. Trata-se do que é claramente evidente, o que realmente importa e qual a sua valência numa esfera de significados lançados a um universo entrópico. Trata-se do que é empírico. Trata-se do que é, de natureza obrigatória a todos os que dispõem das ferramentas mínimas para pensar. Trata-se do que é humano. Parecemos uma espécie de outra espécie que não olha para dentro e não pensa, e não sente, e não se faz valer daquilo que a realmente a distingue do resto. Tudo isto virou exotismo, extravagância, distância.

Francamente, começo a achar tudo uma ilusão tão grande. Uma fantasia tão negligente. Direcções pré-determinadas por uma estrutura socio-cultural virosa. Valores deturpados em ideologias de palanque, de ribalta. Relações de papel: frágeis: consumíveis: a termo: a falha é morte antecipada - não existe margem para erro.

no fim, o que resta?

Farto de procurar as melhores razões para crer.

- Se existe forma de voltar atrás no tempo, diz-me, que eu vou voltar sedento, para encontrar a melhor forma de mudar o desacerto do tempo, meu irmão.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

escrito XXX

[às vezes penso que quando julgamos alguém, estamos de facto, a julgar-mo-nos]

O professor sentou-se na mesa do canto, junto da janela, a sua janela de eleição. Faz um pouco de frio, mas não se importa. De facto, o professor não se importa com muita coisa. Mas é um facto também, pouco haver com que se importar. Enquanto aguarda o café e o bolo de arroz, observa a cidade que se balança a um ritmo acelerado, correndo atrás de um tempo que tende a não ter dono. Um tempo arisco às vontades. Um tempo imaginário: o tempo dos tolos. Franze o sobrolho como se lê-se, ali, através do vidro baço e estreito, uma verdade escondida. Uma verdade da qual não faz parte. Mas reconhece a mentira. Reconhece-se. Também ele corre desalmado atrás do tempo. Também ele o sente na total extensão do seu corpo, nos dias em que está só: e são quase todos os dias. Essa pressão que se torna física. Que implode. Que cai para dentro. Que o absorve. Que o diminui. A verdade também é dele. O tempo também se faz dentro dele, numa estranha sensação de desconforto, que o faz correr, ainda que dormente. Aqui tem! um euro e trinta por favor. Hoje o empregado não é mesmo. É um empregado novo. O café e o bolo de arroz. Paga com dois euros, e deixa o troco de setenta cêntimos em cima da mesa. Como todos os dias, bebe dois tragos de café, atirando-se vorazmente para o bolo. Como sempre, começa meticulosamente pela parte de cima, deixando a parte tostada para o fim. Seguindo a rotina do dia, pede ao empregado o jornal, enquanto este levanta a louça da mesa: como sempre. A capa do jornal. "Mulher encontrada morta em casa, 9 anos depois". Abana a cabeça em negação soltando um suspiro pelo nariz. Pressiona os lábios um contra o outro, como se disputassem um espaço que não lhes pertence, evitando um comentário menos apropriado. Imagina se um dia alguém o encontrará, em casa, morto pelos dias. Se alguém lhe sentirá a falta. Alguém, pronome indefinido, como ele, no café, sozinho: de ninguém. Quando se prepara para abrir a página seis e ler o estranho caso do dia, é interrompido por um velho, dê-me uma moedazinha para comer, senhor. Moro na rua e tenho muita fome, senhor. Por favor. Olha-o de soslaio e acena-lhe que não, imbuído de uma despreocupação tão clara, que o velho vira costas sem insistir mais. Continua a ler o jornal, refugiando-se do ambiente que o rodeia. Assim que batem as nove horas, apressa-se a vestir o casaco como quem foge de algo: a solidão que o acompanha todas as manhãs. Agarra a sua mala enquanto observa a mesa, vazia. A fúria que o invade. O ódio que o esgana. Roda na direcção da porta, avançando em passos pesados, decididos. Avança com a decisão nos pés, que o puxam. Abre a porta do café e olha à sua volta. Sentado na paragem de autocarro, longe da chuva, o velho come um bolo. O mesmo velho que há instantes lhe pedira dinheiro para comer. Grita. Ladrão. Seu gatuno. É por pessoas como o senhor que o mundo está assim. Seu ladrão de merda! O velho olha-o assustado. Não diz nada. Não consegue dizer nada. Lentamente vai-se afastando do professor: irado. Apercebendo-se de uma iminente fuga, agarra-o pelo colarinho e encosta-o ao vidro da paragem de autocarros. Gatuno! Grita, Gatuno! Naturalmente, foram-se juntando algumas pessoas em volta dos dois para apreciar a escaramuça. Tens sorte que não chame a polícia. Ainda se riam na minha cara. Ladrão! O ódio nos punhos do professor. Quando se preparava para investir na cara do velho, guiado pelo ódio que lhe empurrava os punhos, ouviu alguém gritar da porta do café, desculpe, senhor! Deixou cair o seu troco no chão. O silêncio do professor. O silêncio no olhar húmido do velho.


[ E por que vês o argueiro no olho do teu irmão, e não reparas na trave que está no teu olho?, Mateus, 7 versículo 3 ]

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

escrito XXIX

despertador

Despertar o silêncio em trago bruto deste soro turvo, amargo, da prima-matéria dos sentimentos sem rumo e sem nome... despertar o vazio sem forma, sem cor ou som, apenas o sem e o com e mais nada em tudo sem mais nada, só vazio, só silêncio; presença que se estende pelo átrio, sobre tapete vermelho, centrado em abstractos corpos de betão que pesam em mim, em alma; desfilam e doem sabendo-me (vazio).

Despertar tem preço até na mais pobre presença. Tenho apenas uma alma que nunca ganhei, vazia, e por isso escrevo para a decorar. Talvez assim o silêncio fale, por saber que lhe escrevo. Ordeno-lhe a forma e quando me falar, torno-me vazio, cuspo-o de mim.

desperto.


- Eu acho que ele perdeu o norte dos sentidos. No fundo, acho que se perdeu. E como sabes, quem se perde de si mesmo, perde-se dos outros. Achas que morre?

- Não, não morre nos outros. Bem, morre um pouquinho. Mas ele sabe isso?

- Que morreu, ou que morre ?

- Que se perdeu!

- Sabe, ele sabe. Mas não tem como não morrer. A não ser que se encontre.


- Ele? Já não tem olhar para isso. Não lhe viste os olhos? Tão vazios, tão vazios... Já não vêm muito.

- Tens razão.
- Será coração?
- Coração?

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

escrito XXVIII

quero-te
[olhar para dentro em voz alta: digo-te do devaneio. existe uma tendência especial no silêncio individual - o interior do que está circunscrito na forma - para a incerteza das coisas. é assim o interior - quem nós somos realmente - o avesso de quem não somos - por fora. Aí, no âmago, não existem limites ou medidas. a confusão, portanto, é semente adubada em nós, que germina aquando da percepção da individualidade, no avesso da nossa forma exterior. por isso somos tanto por dentro. por isso o silêncio trás facas na mão. por isso a realidade dói nas leis que a compreendem, que nos prendem . um não poder de ser todo, para fora. e fica o silêncio das palavras que não se trocam. das histórias que não se lêem. Digo-te da evasão.]

A noite abraça-o e torna-o só, no negro de quem se deita na cama do desejo: a doença que o aflige por dentro, que o abre. Recorda os olhares, morre. Recorda o sorriso, morre. Recorda o som da voz, morre. E a recordação é o que os aproxima, e a recordação é o que o mata. o tempo vincado na pele. Chora. A razão é que o sufoca. Morre um pouquinho mais. Ele sabe. Ele sabe. Ele sempre soube: o medo de sentir, e sofre. O amor é uma doença degenerativa, quando desejado. o olhar que o absorve e não lhe permite desviar, pestanejar: cada segundo conta para trazer para casa a ilusão nos olhos.

[Desejar quem não se pode ter: a fórmula perfeita para a infelicidade: o ardor no cérebro, nas noites de solidão]


domingo, 5 de dezembro de 2010

escrito XXVII

avesso

Como queria que sofressem a minha ausência, não porque vos desejo ver sofrer, mas porque afinal fui alguém sem notar.
Fica-me o silêncio.

Tocou o céu e o inferno, na noite
Na escuridão de encantos e tremores
Rasgou-se da vida

Ali, rasgado e largado
De alma, amputado, sangrado
Coração em pó, ardido:
Doença degenerativa do sentimento.

Noite de luto, sem lua, nua
Que o abraça no profundo,
E o veste de escuro, e o engole
Na imensidão da eternidade.

Mármores frias das campas de quem se entregou
Flores secas de quem se esqueceu,
E uma foto, não mais que foto, não mais
Memória de alguém.

Choveu água fria, nesse dia, recordo
Olhares diluídos, rios para a imensidão da terra
Da imensidão da dor, de quem
Por olhares se escondeu, do olhar preso de quem

Agora é ninguém,
Na mármore, onde alguém
Jaz morto.

sábado, 4 de dezembro de 2010

escrito XXVI

4 de Dezembro de 2023
[surrealismos de um tempo não tão irreal]

A Humanidade mudou. Parecem distantes os momentos em que o céu era o limite, em que a longitude entre o sonho e a realidade estava à distancia de um passo em corrida. O Homem desejava, o homem tinha. Não demorou a esse limite reduzir-se ao pleno acto da sobrevivência. Sempre foi um engano descrevermo-nos no topo da cadeia alimentar, quando era o desejo - o tumor do sonho - que nos devorava por dentro, sem olhar a escolhas, valores, sem assentir ao poder, a nomes, cores, e a tantas outras coisas que nos aproximam e nos distanciam, obedecendo apenas à fome e nada mais do que essa necessidade básica: o desejo nunca teve escrúpulos, e a tendência seria o domínio total; insaciável chegaria ao trono da existência, para no fim nos abandonar e nos deixar vazios sem a capacidade de sermos além de nós próprios. Esse dia chegou. Como fomos capazes? Tombamos. Não consigo deixar de pensar na pergunta recorrente, que tantos anos me atormentou: o que é o Homem? Resumo: a existência. São tantas as tangentes, as intercepções que se projectam naturalmente irresolúveis, que me parece tão claro o limite da razão e do incognoscível. Como fomos capazes? O resultado surge-me sempre igual: o Homem sempre foi um ser mutável, numa demanda constante por um ideal, uma forma de estar, uma forma de olhar o horizonte, em ultima análise: o domínio. Mas agora, agora o mundo mudou. Os tempos trouxeram exércitos de um avesso à ordem das coisas. Os medos ganharam forma e passeiam-se livremente nas ruas, nas mãos, nos olhos, na vida. O hoje é agora uma demência num corpo inerte e corrompido desprovido de língua e palavras, repleto de ausências: os espaços negros, os vácuos, os vazios. O amanhã, um pesadelo que se repete noite após noite, como um ceifeiro em época de colheita. O ontem, meu deus, o ontem, um Olimpo tão distante quanto a existência de um deus que ousamos substituir. Bem vindos à 3ª guerra mundial, a guerra onde somos escravos dos nossos próprios demónios interiores, onde já não vivemos sem pensar. Os mecanismos.

António tirou o dia para ele. Só ele. Mais ninguém. Longe do enleio das coisas que o rodeiam: longe dos mecanismos, do sofrimento, dos rendados sociais. Longe, António está longe, muito longe. Hoje o dia é dele, sem disfarces, sem acessórios, sem nada mais do que o seu olhar, o seu coração. António: o olhar, o coração. Veste o seu casaco de Inverno e ruma sem regras, sem obrigações. As ruas são amontoados de lixo, restos de uma revolta morta. Sem forças. As paredes das casas, dos prédios, passam mensagens de indignação, de rebelião: são mensagens mudas. Já ninguém as ouve. A rua está vazia. Continua a caminhar. Recorda-se da guerra. A guerra que levou tudo. A guerra que lavrou o mundo. A guerra que incendiou os corações das pessoas: já nada as espera. Do outro lado da rua, a Sr.ª Isabel caminha de olhar tombado. A pele cinzenta, sem cor. As correntes que lhe agarram o corpo a um amontoado de memórias usadas, a desejos famintos, a pequenos demónios que lhe vão devorando a vida, demorando-a. Vai movendo a cabeça de lado para lado, em ritmos desordenados. António fecha os olhos, e caminha, caminha para não ver mais. Para não cair na mesma demência. Para não sofrer da infecção. Caminha para longe, sem pensar. Abre os olhos. Pára. Á sua frente um vulto negro aproxima-se: o medo. Uma nuvem negra, com correntes que se arrastam no chão. Ouvem-se gritos do seu interior. Culpas. Uma dor multiplicada por outras mil. O medo observa-o. António observa o medo. Lembra-se da filha, que dorme em casa. A sua esperança. A sua vontade. O som ensurdecedor das vozes que exalam da nuvem negra. António caminha com a filha no olhar: a esperança: a vontade. O som das correntes que se afastam. António respira fundo o ar frio da manhã que vai terminando, respira um alívio, respira a filha. Respiram-se. Não receia. Sabe que os medos caminham pelas ruas em busca de hospedeiros. Mas António não receia a infecção. Ainda acredita. Ainda sente a vontade: Marília: a filha: a vontade: a esperança: a sua simbiose. E o medo tem medo da vontade, da esperança. O medo também tem medo. É em si, na sua essência, a sua própria tormenta.

António aproxima-se agora do que era uma praça magnanime. A praça da Vitória: é agora praça derrotada. Uma praça de escombros. Do seu centro, António olha em volta, reavivando as memórias: reconstrói. O teatro, a estação de comboios, o museu. Agora, nada. Apenas escombros. Memórias. Cinzas. Lembra-se quando ali ía com os pais, ao museu. O pai era pintor. A mãe, a sua musa. Juntos eram arte. Uma arte tão cheia de tudo. Sorri esses momentos. A guerra que os levou. Caminha para o que sobra do museu, para junto dos pais. Por entre as paredes tombadas, incompletas, vislumbra um quadro ainda preso ao betão. Observa-o. Perde-se na tinta que o preenche. António perde-se. Perde-se na tela. Na janela, na tela. La Condition Humaine de René Magritte. O mundo que vemos fora de nós mesmo, na nossa condição, nas nossas experiências. A limitação das coisas. O tempo que passa, sem o sentirmos na sua crueza, no seu momento. António perde-se. António respira fundo. Respira a vontade. Respira a esperança. António respira-se. Ele sabe. António sabe que ainda é tempo no tempo que se faz. A esperança.

[Obrigado a todos os Antónios do mundo, por me fazerem acreditar. Obrigado por me fazerem valer de um futuro capaz. Porque na verdade, na verdade, o futuro é o presente que se faz. Que na esperança haja essa vontade de mudar.]



sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

escrito XXV

Helena
[o bom de sonhar]

Ela sempre sonhou com a lua. Era um desejo forte de segunda-feira, dividir a lua em mil pedaços e reparti-los pelo mundo. Assim éramos brilhantes e sensíveis.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

escrito XXIV

carta para o meu neto, o teu filho Diogo

Pedro, escrevo-te para que me leias ao meu neto. Mas peço-te que me leias com entoação, com o teatro das coisas, para desculpar as minhas falhas na escrita, a minha falta de atenção. Bem sabes que não sou escritor. Preciso que me leias. Que me leias ao Diogo. Para que, num momento qualquer, ele me tenha. O meu querido Diogo me tenha. Tenho saudades, sabes? Saudades de te ver. Saudade de vos ver. Esventra-me tanto esta nossa maldição. Mas não te quero ocupar na minha tristeza. Desculpa-me. Lê-me.

Era uma vez, num mundo para além das estrelas, para além dos sonhos, para além de tudo o que se pode ver, um homem velho. Um homem muito velho que se esqueceu quem era. Vivia sozinho, entre os dias, entre os pensamentos: dentro dele mesmo. Reza a história, que num dia de Outono - era ele ainda novo - na vontade de se tornar o homem mais importante de todos os homens, se engoliu a ele próprio. E desde então, viveu só para si. Dentro dele. Porque se engoliu. Foi de facto o homem mais importante de todos, pois era só ele. Porque dentro dele, na sua vaidade, havia apenas espaço para ele e para mais ninguém. Acordava sozinho. Almoçava sozinho. Conversava sozinho. Jantava sozinho. Dormia sozinho. E assim se iam passando os dias, ele e a sua vaidade. Com o passar do tempo, ia-se esquecendo das coisas: das pessoas que amava, das memórias que trazia, do homem grandioso que outrora realmente fora. E foi ficando velho, ele e a vaidade. Juntos ficavam velhos. Sem histórias. Foram deixando de se falar. Juntos se apercebiam que eram reis de coisa alguma. Ora certo dia, entre todo o silêncio que o habitava, gritou. Gritou de tal maneira, que tudo dentro dele estremeceu. Dizem que foi nesse dia que acordou. Que saiu de dentro dele mesmo. Mas não tinha ninguém à sua volta. Era tudo tão árido como quando se tinha dentro dele. Um deserto. Não havia ninguém. Ninguém. Nem mesmo a vaidade do seu lado como antigamente. Então sentou-se, e ali ficou a chorar durante muitos dias, tantos dias que lentamente se foram formando rios das suas lágrimas. Rios da sua tristeza. Era um homem velho, sem ninguém. A sua tristeza que agora banhava o deserto. Porque um dia se engoliu. E agora, esqueceu-se quem era. Mas á medida que o tempo ia passando, também por ele passavam memórias distantes. Memórias perdidas. Memórias de quem fora. A sua família. A mulher. O seu filho. Lembrava-se. E o arrependimento habitava dentro dele. Era, agora, um homem velho arrependido. Saudoso dos seus. Trouxe-lhe o vento, que tinha um neto. Meu deus, um neto, dizia baixinho. E foi nesse dia que decidiu escrever uma carta. Escrever o seu arrependimento. Escrever a sua saudade. A sua vontade de mudar. A sua vontade de os abraçar. E escreveu. No fim, deu a carta ao vento para a entregar. E até hoje, o homem velho espera. Ele e o arrependimento. Ele e a saudade.

E assim, o homem velho, muito velho, aprendeu a sua lição: não há nada mais importante na vida do que as pessoas que nos amam. Que na vaidade de nós mesmo, não sobra coisa alguma.

Meu querido filho, perdoa-me.


[Pai, tenho pena do homem velho. Espero que o perdoem. O pai chora.]


quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

escrito XXIII

amo-te
[a forma como o sufoca e o abraça sem pedir licença]

Falo-vos de um amor. Não um amor qualquer: dos que se cansam, dos que se esvanecem, dos que se exaltam, só, quando nos sentimos sós. Um amor. Um amor de verdade. Um amor de uma vida. Um amor que vem para ficar. E fica. Bem guardado. E queima: para sempre. É desse amor que vos falo. Que de outra coisa não vos consigo falar. Porque preenche. Porque invade. Porque se exalta a qualquer hora. Porque me ocupa todo o espaço. Enfim, porque devora. E odeio por amar assim. Por não me amares dessa forma: porque se cansa. Porque se esvanece. Porque se exalta, só, quando sentes falta: de mim. Essa condição de te amar para sempre: essa doença. Amo-te. Amo-te para sempre. Amo-te com a intensidade de um sol. De dois. De três. De quatro. Mil. Amo-te, pronto. Amo-te para a eternidade. Acordar e sentir a falta do teu olhar: eu dentro do teu olhar: tu dentro do meu olhar: o nosso olhar. Por mais que gaste a palavra, ela nunca se gasta, por dentro. Amo-te. Amo-te. Amo-te. Amo-te. Amo-te. Amo-te. Amo-te. Amo-te muito. Amo-te tanto. Rasgo-me na repetição dessa penitência. Amo-te ao ponto de não haver maior grau de significação.


Meu deus. O que me restam são vultos, são vozes, silêncios disformes: são sonhos errados, nesta escrita de cordel. Porque me enrola. Porque me simplifica. Porque me torna tão básico. Sou um eterno escravo da tua ausência. Um tricô de coisa alguma.

Amo-te.


terça-feira, 30 de novembro de 2010

escrito XXII

o funeral
[ver parte primeira - escrito XI]

Quinta. O céu é toda uma mancha cinzenta. Chove. Gosto muito de chuva. Pouso os meus braços na janela e olho com alguma atenção o horizonte de cimento: as silhuetas dos prédios de Joanesburgo, no horizonte. Os aviões. As nuvens. Os carros. As pessoas. Olho com alguma atenção, mas não atento a nada. Não penso em nada. Acabei de acordar. Absorvo apenas o conforto da chuva que cai sobre a terra laranja-avermelhada, sobre a janela, sobre os meus olhos. Os riscos de luz que balançam entre a neblina. Chove muito. Os guarda-chuva de muitas cores. As bicicletas desordenadas, a fugir da chuva. Faz-me falta o rádio de Rifumo. Agora, as manhãs são surdas. Os autocarros, velhos na surdez da manhã. O elefante.

Hoje é o funeral do Rifumo: duas semanas depois. A família juntou todas as suas poupanças para lhe oferecer a melhor despedida possível. Dona Tithandianasi teve de abrir os cordões ao decote para convencer o doutor a aguentar o corpo do filho durante todo este tempo, na morgue. Ora o doutor não teve ar para recusar o pedido. Dona Tithandianasi amava muito o filho. Engano-me. Dona Tithandianasi ama muito o filho. Porque o carrega na totalidade do seu corpo. Na totalidade da sua tristeza. Agora caminha corcunda. E a tristeza é a falta da vontade. A tristeza embebeda-nos a vontade: Dona Tithandianasi perdeu a vontade. Dona Tithandianasi carrega o filho no corpo. Disse-me a propósito do funeral, ninguém pode esquecer o meu querido filho, ninguém. Haverá de tudo para que ninguém se esqueça. Tem de ser memorável, Zahra, memorável. E seguimos para Cantih, encomendar o caixão de Rifumo. Um caixão muito especial. Um elefante. Nada mais do que um elefante, nada menos que a força que o veste. Já tinha ouvido falar nestes caixões. Quando chegamos ao carpinteiro, havia lá de tudo: galinhas, baleias, leões, aviões, carros, entre outros por terminar. Mas Rifumo era um elefante: Rifumo: a força, a sabedoria: o elefante. Dona Tithandianasi deixou na mesa um saco muito gordo de notas, das poupanças: da família, dos amigos. O melhor funeral do quarteirão, Zahra. O melhor. Para Dona Tithandianasi, um funeral é muito importante, por demonstrar a força de uma família, o compromisso, a honra, o respeito. A memória.

Convidou todos os familiares, amigos, vizinhos, para presidirem o momento. Hoje é dia de festa no prédio. Vai haver muita comida, muita música, muitos risos, muitas lágrimas, muita dança. Da janela vejo o elefante chegar aos ombros de quatro homens. Seguram o peso de Rifumo. Seguram o peso que carrega uma mãe. Uma ausência. A muito mau jeito lá carregam o caixão pela escadaria, onze andares. Vão entoando as últimas palavras, as últimas palavras da tarde de quarta feira: a tarde que o roubou de nós. Liberdade. Liberdade. Na casa de Rifumo, preparam-se as coisas a preceito. As comidas, as bebidas, as flores, os discos. Hoje é o dia de Rifumo. A despedida.

Onze horas. O décimo primeiro andar está lotado. Grita-se muito. Dançamos. Contamos histórias. O rádio de Rifumo está na janela, como sempre esteve. Para nós. Para o prédio. Dançamos muito. Somos uma comunidade. Somos em parte o legado de Rifumo. Rifumo é uma parte de nós. Somos. Todos: somos um.

A tarde vai cobrindo o prédio. É hora de entregar Rifumo à terra. Ao lugar onde as coisas nascem, para que ele, ele também nasça, e se eleve. Tenho saudades tuas Rifumo. Das nossas conversas. Dos teus disparates. Da forma como me colocavas na ordem das coisas. Eras um irmão, sabias? O elefante pintado num cuidado quase impressionista. Rifumo, as manhãs terão o teu nome. A tua voz. A tua valência nas nossas vidas.

O elefante parte com a cara virada para casa, sobre os ombros de quem ainda se aguenta: para que se despeça. Despedimo-nos. Adeus Rifumo.


segunda-feira, 29 de novembro de 2010

escrito XXI

devaneio da fuga
[Parou para pensar. Mas desta vez, para pensar de facto. Nem sempre somos aquilo que imaginamos, “tão pouco mais ou menos”, aquilo que nos imaginam e imaginamos nos outros. Por cada dia que se põem, é aquela palavra dita por aquela pessoa, aquela expressão, aquele olhar, aquele abraço, aquela discussão, aquela amizade, aquele amor, aquele, aquela: não importa, mudamos sem notarmos. E continua a pensar. Odeio quando sou egoísta, odeio quando o aborreço, odeio sentir demais, odeio quando me odeio de manhã, odeio quando sou arrogante, odeio quando a aborreço, odeio quando me odeio de tarde, odeio quando não compreendo a incompreensão dos outros, odeio quando os aborreço, odeio quando me odeio de noite. Odeio-me. Sinto uma certa pena por esta disformidade pessoal]

Fim de tarde. O relógio grita o atraso de uma vida escondida na ilusão. A tarde que se escorre nos olhos. A roupa dobrada na mala por fechar: a indecisão. Fita, mais uma vez, a janela: o pôr-do-sol no amarelo cansado do prédio vizinho. A mala fechada: a partida: a decisão. Na mesa, o bilhete de comboio. Despede-se do quarto, das paredes que guardam as palavras mudas da frustração de uma vida mentida. A mala na mão. O bilhete de comboio no bolso das calças. A decisão no coração. Vou mudar, vou mudar. A porta bate. Dá três voltas na fechadura mesmo sabendo que não volta. Não. Nunca. Nunca mais. Espera o autocarro. A adrenalina de se ver fora de si. Entra no autocarro. Não pensa em nada. É tudo muito confuso. Sai do autocarro: Avenida dos Aliados. A noite enche-se de sombras. Sente a noite escorrer-se nos olhos, trémulos. Abraça a baixa, a calçada, as pessoas cinzentas, os edifícios cinzentos, a praça cinzenta, as pombas, as mulheres que vendem meias de lycra, o senhor do acordeão, o outro senhor das lotarias, as crianças que mergulham no douro, os pedintes, os jardins do palácio, acena com a alma o adeus. A estação de comboio. Desperta: - o comboio do cais cinco, com destino a Fuga, parte dentro de cinco minutos. Caminha para a porta, pensa, se conseguir fumar um cigarro e o comboio ainda não tiver partido é porque estou a tomar a melhor decisão. Ri-se. Fuma um cigarro, enquanto se despede da estação de S. Bento, enquanto se desculpa. O comboio vai partir. Entra. Ás vezes é tão mais fácil fugir.


domingo, 28 de novembro de 2010

escrito XX

devaneios
[Se por algum motivo a pele se rasgar, fujo-me. Escoo-me.]


Love, let me sleep tonight on your couch

É tão fácil esconder tudo. Sou vazio por dentro. Arranjar um espacinho e atirar tudo o que não queremos mostrar. Sou vazio por fora. Não me tenho fora de mim. Tenho-me dentro, não me tendo realmente, porque escondo. E é tão fácil ser aquilo que não somos, que se torna um vício: Prisão. Iludo-me.

Não é fácil. É custoso. Difícil. Penoso. Doloroso. Espinhoso. Molesto à realidade do mundo: aquela que me envolve e me diz, em vozes sibilantes: não o olhes com o coração, é profano. Tremo por pensar-te, assim, tão de perto. Profano, dizem-me. É espinhoso. Não é fácil. É tudo tão impossível. Não existe esperança para isto. Pois não? A lucidez é carrasco. Os ensaios são venenos, lentos. Se ao menos tu, se, ou então se. Se, é ilusão para estas coisas. Quero-te, aqui, bem junto de mim. É veneno. É profano, sibilam. Não é fácil. O teu olhar que me agarra. O teu sorriso. A tua voz. Um desequilíbrio meu. Certamente. Mas sinto. E não há mal nisso. Não o olhes com o coração, é profano. Não é fácil.

And I couldn't awake from the nightmare that sucked me in and pulled me under I love you, but i'm afraid to love you

Fim. Não posso continuar. Este silêncio que me rasga por dentro, quando te olho, no teu olhar: quando me olhas: eu dentro do teu silêncio. É um deserto imenso, esse, antes do amor. Eu dentro do teu olhar, verde. O meu olhar que abraça o teu, e se dilui no teu, e se abre no teu, e se perde no teu. Um deserto. O teu silêncio que me abraça, na indiferença.

O silêncio dói. O teu olhar no meu: dói: os nossos olhares: o silêncio. E é tão pouco, tudo isto. Não posso continuar. A aridez do solo, quando sonho, da linguagem do teu corpo, quando te falo. Não posso continuar, amor. Sinto o cheiro trágico de tudo isto.

A ilusão abraça quem se deixa ficar no cru do dia de olhos fechados; os sonhos: predadores. E somos presa fácil. Sophia lunar ardeu. Ardi. Ardemos. Não olhem para mim, porque eu sou negra, porque o sol olhou para mim. As profundezas tenebrosas cobriram-me o rosto e a terra está corrompida e maculada nas minhas obras, e as trevas abateram-se sobre ela, assim como eu estou atolada no lodo dos abismos e a minha substância não foi aberta. Ilusão. Cinzas. O fogo é a realidade que me queima.

Vivo na total deformação do homem que um dia aspirei não ser.

Escondo.



sábado, 27 de novembro de 2010

escrito XIX

faltas-me

Sento-me todos dias no banco onde te sentavas
Por baixo da árvore do jardim ...
O vento dança como sempre dançou,
As folhas caem como sempre caíram;
O sol abraça-me como sempre abraçou,

A chuva beija-me como sempre beijou;

As sombras cobrem-me como sempre o fizeram,

O teu mundo abarca-me como nunca me abarcou!

A tua alma falta-me como nunca faltou;

Agora só o deambular ébrio deste olhar
Em movimentos excêntricos,
Me aprisiona neste banco de madeira;

Esse espírito promulgador da escuridão

Que vagueia por orbes da penumbra

E que ainda hoje me sustenta a dor,

Me arrefece a alma,

Me intoxica com substancias pútridas ...

Tudo neste banco onde sempre te sentavas

Por baixo da árvore do jardim ...
Estou eu e esta dolorosa saudade!



sexta-feira, 26 de novembro de 2010

escrito XVIII

Judite Tola
[na esfera das coisas que se mutam, fica a essência]


Judite é a leveza. Na aldeia era conhecida como Judite Tola. Dizem que a parteira a deixou cair quando nasceu, ao que Filomena jura, pela alma da minha mãezinha, não ter cometido tal distracção. Judite é a inocência. Órfã de pais, diz o senhor Joaquim, órfã de pais e cabecinha, lá vai vivendo com a tia Teresa, que lhe ficou de encargo quando a irmã lhe faleceu. Judite é a simplicidade das coisas. Judite Tola encarrega-se de todas as tarefas em casa. Judite Varre. Judite lava. Judite limpa. Judite cozinha. Judite semeia. Judite colhe. Judite dá de comer aos animais. Judite. Judite. Judite. Ao contrário do que todos imaginam e comentam, Judite não é a gata borralheira: porque sorri. Porque vive num tempo diferente de todos os outros. Porque não quer ser mais além de quem é, hoje. Porque é feliz. Porque é tonta. Ao primeiro rasgo de luz da manhã, levanta-se e vai dar de comer aos animais. Começa pelas galinhas, depois pelo porco, conversa com o burro e termina com a vaca Arlinda. E sorri. Assim terminada a tarefa, apressa-se à padaria do Berto para comprar pão para o pequeno almoço da tia. Veste uma saia muito mal tratada de um tom violeta, uma camisola de um amarelo já devorado pelo tempo, e umas sandálias que já mais parecem uns chinelos. Que já não se prendem a nada. Descabelada, pega na sua bicicleta amarela, e pedala enquanto entoa uma música que nunca ouviu. Uma música que lhe surge. Judite é a música. Judite Tola não fala, apenas se exterioriza em expressões: em olhares, em sorrisos, em gestos, em vontades. O sino pregado à porta badala, e Berto sabe que são quatro pães. Judite Tola é sempre a primeira a entrar na padaria. O Berto sabe que são quatro pães. Judite sorri com o seu olhar amêndoa e tão cheio de tudo o que a rodeia, enquanto pousa alguns tostões na banca. O dia nos olhos. Bom dia Judite. Manda os meus cumprimentos à tua tia. Judite acena-lhe com um sim e, ainda mais descabelada da viagem, faz o sino badalar uma vez mais. Monta a bicicleta rumo a casa, rumo ao pequeno almoço, rumo às tarefas que lhe faltam, rumo à tia. Judite é o dia. Berto sorri de soslaio. Na aldeia toda a gente gosta de Judite. Guardam-lhe um sentimento de compaixão, pela perda. Judite é a aldeia. O seu cabelo comprido, descabelado, esvoaça. O pão na cesta da bicicleta. As sandálias que já não se prendem, que são chinelos. O caminho em terra. Judite entoa uma música. Cruza-se pelas meninas da grande casa. A casa dos Kayser. A casa da luxurias. Lá vai a pobre coitada. Olha para ela, toda descabelada. Riem-se. O buraco no caminho de terra. Judite cai. As meninas Kayser riem-se muito. soltam gargalhadas insufladas em troça. Silêncio. Judite pousa a mão no joelho, que lhe arde. A bicicleta no chão. O pão espalhado pela terra. O pequeno almoço da tia. As meninas estendem-lhe a mão. Judite Tola estende a mão para se levantar. As meninas Kayser voltam a rir-se muito. Achas que te tocamos descabelada? Ainda apanhamos bichos! Riem-se tanto. Viram costas em direcção ao seu caminho. Judite descabelada, Judite destrambelhada. Judite descabelada, Judite destrambelhada. Judite descabelada, Judite destrambelhada. Cantam, enquanto se afastam. Judite é o silêncio. Levanta-se, agarra na bicicleta, no pão. Caminha para casa. Judite não entoa uma música. Judite não segura o dia nos olhos. Judite vai pesada. O tempo são meses nos dois minutos que a separam do destino. Tomba a bicicleta no jardim. Limpa o pão. A saia violeta, rasgada. A camisola que já não era amarela, enlameada. Barra o pão em compota, muita compota, para disfarçar o sabor a terra. O chã que ferve. Bom dia minha querida. A tia senta-se à mesa. Judite pousa o pequeno almoço. Não sorri. Não olha a tia. Sai imediatamente da cozinha para dar de beber ao burro. Para fugir da vergonha que a embebeda, da raiva que a embebeda, da tristeza que a embebeda. São tudo coisas novas para Judite. São tudo sensações que a embebedam, e a destroem, por dentro. Atira o balde para o poço, para o encher, para dar de beber ao burro. O seu reflexo na água. O reflexo de uma face suja em lama. Judite vê-se descabelada. Uma lágrima que se funde na água. É agora água salgada. Judite. O reflexo de Judite Tola. A inocência que se vaza. Perde-se no seu olhar. Judite não dá de beber ao burro. Corre. Corre muito. Judite corre tanto. Judite corre uma fúria que lhe carbura o corpo. O caminho de terra. A inocência que fica para trás, no balde, na água, no reflexo. Judite Tola corre muito. Respira ofegantemente. Não entoa uma música. As sandálias que se soltam dos pés, que ficam para trás. Os pés na terra enlameada. A raiva. Judite é a raiva. A fúria. Judite é a fúria. No horizonte as meninas Kayser. Nos olhos de Judite as meninas Kayser, perdidas entre uma mão cheia de sensações que Judite Tola desconhecia. Judite aproxima-se das meninas. Grita. Grita muito. Judite Tola grita numa voz que nunca ninguém lhe ouviu. Judite grita tanto. Atira-se para cima das meninas. Berra. Grita. Berram. Gritam. As mãos de Judite nos cabelos das meninas. Os cabelos são, agora, descabelados. São agora cabelos descabelados. O das meninas, o de Judite. O Berto apressa-se a separa-las. As mãos de Judite não largam os cabelos das meninas, que berram, que choram. Judite ri-se. Judite ri-se muito. Judite Tola ri-se tanto. A fúria que lhe tolda o pensamento. A raiva que lhe bombeia o sangue, nas veias. Pela primeira vez, Judite fala: Descabeladas. Descabeladas. Descabeladas. Grita, Descabeladas. Descabeladas. Descabeladas. A cara de espanto de Berto. A voz de Judite. As caras de espanto das meninas descabeladas. Berto ri-se. Berto ri-se muito. Berto ri-se tanto. As meninas no chão, descabeladas. As faces molhadas em lama, em lágrimas. Judite aproxima-se das meninas. Estende-lhes a mão. Levanta-as. Judite Sorri. Judite olha-as nos olhos. Limpa-lhes a cara. As meninas envergonhadas. Vira costas e volta para casa, entoando uma música, uma inocência que se devolve. Judite, grita uma das meninas, queres vir brincar connosco? Judite sorri. Judite sorri muito. Judite sorri tanto. Acena que sim. Judite Tola sorri.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

escrito XVII

o despertar
[tanta a tristeza, inerte e voraz. tão sentida: molesta tristeza. e o tempo que não olha para trás, não me devolve o que ficou: - devolve-me a vontade para não viver na saudade. leva-me o tempo.]


28 de Dezembro. Quando acordei pela primeira vez, dias antes de fazer dez anos, apercebi-me. E que miséria. O despertar de um primeiro sono. Foi por essa altura que o quotidiano deixou de ser tão embriagado, imperceptível. A inocência rainha, fez-me bastardo. Abraçou-me a lucidez. Lembro das últimas palavras, das últimas imagens. A minha irmã penteava-lhe o cabelo, sorria, não desconfiava. Ele sorria. Sorria-lhe. Sorriam. A minha mãe olhava para nós, sobre a escuridão do pequeno quarto onde vivíamos. Não sei em que pensava. Doía-me o coração pensa-la sofrer, e talvez por isso a imaginasse ali apenas para nós, forte, que sofria mas suportaria a nossa dor no que se adivinhava. O meu pai morreu nessa manhã de inverno. O pai adormeceu, dizia Madalena enquanto lhe acarinhava o cabelo. Corri para a minha mãe. Chorei o dia todo. Madalena não compreendia. Chorava também por me ver chorar. Tinha seis anos. A minha mãe não chorava. Os seus braços, magros, agarravam-nos, envolviam-nos numa força que não tinham. Com a cabeça pousada sobre a minha, olhava para o vazio. Era um olhar pesado, um olhar tão cheio de tudo: o passado, o presente, o futuro. Um olhar que tremia, porque os fortes também tremem, também temem, também questionam. O pai adormeceu. Cuida da tua irmã e da tua mãe. As palavras cortavam todas as coisas em que acreditava. As coisas fáceis, simples, fantasiosas: os pequenos impérios sobre o meu domínio feudal nas terras da escuridão por debaixo da minha cama, os cavaleiros negros que habitavam o armário, a bruxa má de cabelos ruivos chamada Madalena a irmã, a intemporalidade. O pai adormeceu. As suas memórias enchiam-nos o peito, mas não respirávamos. Madalena sorria uma inocência tão bela, tão cristalina. Eu chorava. Não tardou a Madalena chorar também. A mãe não sorria. A mãe não chorava. Foi a primeira vez que vi alguém morrer: o meu pai: a minha mãe: a minha irmã: eu. Cada um de nós morreu um pouco naquela manhã cinza de Dezembro. Acordei quando o meu pai adormeceu. Desde então, tudo se complicou. O quarto, que era pequeno, tornara-se numa grande despesa para a minha mãe. Na realidade não era bem um quarto, mas sim um sótão alugado por alguns tostões na Rua das Flores. Ironicamente, as flores já não eram suficientes para as despesas. A minha mãe era florista, mas não uma florista qualquer como as que víamos à porta do cemitério, ou no mercado. Cada arranjo contava uma história, cada flor um segredo em verso, cada pétala uma palavra, cada essência uma epopeia magna das coisas que não ousamos dar nome. Mas as flores já não eram suficientes. Assim como o ar já não era suficiente. As lágrimas. As sensações. Os gestos. As palavras. Já nada era suficiente. Morremos naquela manhã para acordarmos.

Desde cedo comecei a compreender o poder, a importância, a dependência, a força que uma pessoa pode ter sobre outra. O quão fácil é para duas pessoas se destruírem, mesmo sem o desejarem ou consentirem. Era tudo um jogo de dependências, como se as relações pudessem exercer uma força gravítica nos intervenientes, que se quebrada ou modificada, pudesse alterar ou influir na movimentação, no equilíbrio dos corpos, atingindo-lhes o núcleo: o estado de espírito, de consciência na imensidão de um universo composto pelas ausências: propulsores de actividade. Seriam portanto as relações puras reacções físico-químicas, como os astros. O meu pai era uma estrela a centenas de anos luz, morta. No entanto, para nós, dentro de nós, ainda existia. A luz dele ainda nos atingia o peito, numa angústia, numa beleza estranha de o termos. Uma luz tão cheia de vazios, que projectava o passado. O meu pai era uma estrela morta como todas as outras que víamos no céu. O passado que envolve o presente: o céu: o meu pai.

Não passou muito tempo até sairmos do prédio gasto e esguio, das ruas cinzentas e frias, dos pequenos sítios, dos pequenos momentos. A loja da mãe fechou. Dia 2 de Janeiro. Sábado. Partimos. A mãe trancou a porta. Lembro-me de a ver nervosa, acelerada, nessa última manhã que víamos nascer, que víamos morrer, no Porto. Cada frase que dizia, imediatamente a repetia em tom baixo, como se falasse para nós e depois para ela mesma numa demanda por um conforto que não tinha, uma voz que lhe faltava: o pai. Vamos lá, vamos lá para a estação. Já nada nos espera aqui. Nada nos espera. Vamos lá. Eu segurava um ramo muito bonito feito por ela, para dar à minha avó na chegada. Como a estação de comboio ficava mesmo ao lado de casa, ainda tivemos tempo de comer uns torrões oferecidos pela D.ª Lucinda que os vendia junto da bilheteira. Lá nos esperava, envergando o seu habitual vestido vermelho às pintas brancas, que lhe cobria o corpo inchado. Ela e a mãe trocaram um longo olhar em silêncio, um silêncio cheio de palavras que custavam, que queimavam. Abraçou-a. Vocês venham-me visitar suas pestes. Beijou-nos aos dois. Beijou a minha mãe. Á socapa deixou-lhe um saquinho com notas no bolso do casaco de ganga. Adeus minha querida. Vem visitar-me. Vamos todos ter muitas saudades. Já sabes que as portas de minha casa estão sempre abertas. A minha mãe sorriu, sem sorrir de verdade. O rosto chorava, mas não lhe via lágrimas. Agora sei que chorava por dentro. Que o corpo era um oceano de memórias onde se afogava, onde lutava para manter a cabeça firme, fora de água, para respirar, para sobreviver. Às 9:15 chegava o nosso comboio. Finalmente ouvia-se a voz da menina da bilheteira ecoar na estação: o comboio preparava-se para partir. A Madalena saltava de alegria. Lembro-me tão bem. Carregava uma mochila cor de rosa nas costas com alguma roupa e as suas duas bonecas favoritas: Anita e Joana, as suas boas amigas de chá. Anda mano. Corre, que já nada nos espera aqui, vamos lá. Para Madalena era tudo tão perfeito, tão entusiasmante. Receava que perguntasse pelo pai. Já era habitual o pai não ir connosco visitar a avó, por isso não estranhava; mas agora o nunca pareceu-me tempo a mais. A D.ª Lucinda chorava. Adeus meus queridos. Foram as últimas palavras que ouvi na partida. As últimas palavras que ouvi da amiga da mãe. A Lucinda dos torrões, era assim que a chamavam na rua. Era o nome de guerra. Foi a última vez que vi a Lucinda dos torrões. Adeus Lucinda.

[para continuar]


quarta-feira, 24 de novembro de 2010

escrito XVI

limbo. surrealismos
[serve-me pouco, hoje, a imaginação. ainda assim, mantenho o desafio]


Existem momentos na vida, essas pequenas telas do olhar, onde nos pintamos na periferia de um foco visual, presos numa moldura que nos sufoca, deslocados em ambientes controlados, porosos, num espaço, num tempo. Pedro era o risco que não era contorno, a cor que não era forma, o traço que não era composição: Pedro não era. Como as mãos, os dias envelheciam com ele, ganhavam o calo de uma vida: o suor das rotinas. Morriam juntos. Acordava com o raiar do dia, no campo, na terra. O dia era a lavoura.


A manhã é intensa, quente. O arado embateu contra algo submerso na terra. O arado não se move, quebra a rotina. Pedro empurra, grita ao animal que o puxe. O arado não se move, o burro não se move, a terra não se move.


Pedro já foi casado. Aconteceu tudo muito rápido. Pedro já teve filhos. A vida foi um segundo. A manhã começava na mesa, em família. Tudo o que tem início, conhece um fim. O café com leite, o pão, os sorrisos de um dia que começava todas as manhãs na mesa de madeira da avó. As manhãs também têm um fim. Tudo fazia sentido, haviam propósitos, vontades servidas pelo amor.

Mergulha as mãos na terra. O calor nas costas, gastas, velhas, suadas: o corpo também chora. O burro deita-se na terra, descansa. O arado não se move. Pedro cava. As mãos são calejadas. O corpo debruçado em esforço, chora.

No final da estação, dois terços do cultivo eram entregues ao dono da propriedade. O sacrifício da lavoura era obrigatório, trazia um telhado, um prato na mesa. Foi a terra dos pais, dos avós. Com a peste negra, já não havia dinheiro guardado por debaixo do soalho do quarto dos pais, haviam apenas papeis, dívidas. Da noite para o dia, todo o esforço de uma geração conheceu novo proprietário. Conheceu uma corrida contra o tempo, contra a tirania de um soberano. Aconteceu tudo muito rápido.


Pedro levanta-se. Soltam-se rios dos olhos. A água percorre a face pálida, cai na terra. Da terra nascem memórias a preto e branco, semitransparentes. Têm raízes. À sua volta uma floresta de memórias, agarradas ao chão. Os pais, os avós. Crescem no sal das lágrimas. Do buraco cavado, brotam os filhos, a mulher. Têm buracos no peito, na cabeça. Os braços são ramos que o agarram, que o arranham: têm espinhos. O sangue na terra. Crescem três homens do vermelho turvo. Pedro chora. Crescem com raízes que o prendem ao chão. Olha à sua volta. O burro é agora cavalo, montado pelo soberano, que sorri. O soberano sorri. Os três homens disparam contra Pedro. Abrem-se buracos na carne. Os braços da família, as raízes. Pedro resiste. As raízes que o puxam para a terra. Pedro vê a família no buraco, morta. Pedro vê-se, morto. Foi tudo tão rápido. O arado não se move. Por debaixo da terra, Pedro, a mulher, os filhos, não se movem.

A época não foi produtiva. Não tinham cultivo suficiente para pagar ao senhor da terra. A mulher chorava. Os filhos não compreendiam. Pedro, lá fora, sangrava das mãos, puxava ele o arado. Não parava. No pensamento o amor pela família. Pedro sangrava o inevitável. Foi tudo tão rápido.

O arado não se move. Na terra cavada, jaz Pedro e a família. Pedro encontrou-se.


terça-feira, 23 de novembro de 2010

escrito XV

carta para dentro

Hoje é tarde. Abro a janela do quarto: análogo à vontade de me abrir ao mundo. Não me conheço fora de mim: abro-me para dentro. Exteriorizo-me para dentro. Sempre para dentro. Não existo por fora, para fora. Dói, na intensidade da forma. A janela aberta. A tarde que cai sobre as minhas costas, que se estende na arcada do corpo, na pele. Estendemo-nos. Somos: um. Sinto-a. A tarde dentro de mim. O imediato das sensações que expira, que eu inspiro. Um. A tarde que se faz dentro de mim, no quotidiano da paisagem: os prédios, as vozes, as sirenes, o ruído áspero do asfalto, o mar: na melancolia da luz que termina, dentro de mim, quando inspiro: a tarde. A melancolia das coisas que terminam. E é tarde, na tarde. E é tão tarde para nós. A tarde tem-me dentro dela. E somos as coisas simples. E não pensamos nos simbolismos das coisas. Respiramos. E temo-nos dentro de cada um. E não perguntamos coisas, não. Respiramo-nos. Ardemos no calor do sol que se põem. Somos um. E é tarde na tarde que se faz noite. E sou tanto por dentro e tão pouco sou no final. Amanhã morri. Entrentanto, vou morrendo em ti.

devolve-me a vontade. devolve-me à vontade.


[
...O menino, por fim, tombou cansado | O seu boneco aí jaz esfarelado... José Régio]



segunda-feira, 22 de novembro de 2010

escrito XIV

impossibilidade
[O desejo e o silêncio do desejo podem ser fatais: um organismo vivo que se vai alimentado aos poucos e poucos, por dentro: diagnóstico do paciente que vê as coisas na razão dos outros…]

Ele apaixonou-se. Ainda não sabe, senão uma sensação na barriga quando cruza o olhar, quando se prende no olhar, quando se vê no olhar e se prende uma outra vez no olhar e deseja: e são tantas as coisas que se dizem num olhar, quando se prendem. Um vulto negro: a razão, e não bate à porta. Não tem rosto. A porta aberta: entra no quarto e bafeja um silêncio sufocante e quente que o agarra, e o abre, e lhe rouba tudo o que não lhe obedece: a razão é ladra de desejos. O corpo dele aberto. Chora. O silêncio que o invade e lhe fecha a laceração. O silêncio alojado no corpo dele. Sente-se vazio.
Não existe um “nós”, nunca poderá existir. A existência parte de um princípio de criação: a razão: nada foi criado, apenas, ilusão. Ele deseja.

domingo, 21 de novembro de 2010

escrito XIII

homem ninguém
[a vida procuro-a nos que me fazem, por ser também, um pouco neles. somos.]


Homem, ninguém te vê inteiro, pelo que és, pelo que crês. Um homem incerto, diz quem julga que te vê, quem não te soube valer. Em gestos estudados, os olhos: verdes, frios, gelados, negados; e olham-te, tocam-te e amassam-te, e tu sem nada a dizer. Apenas na mão, só, doce negação do prazer dos outros. Doce por ser, oportunidade de ter também, ódio: dor e ódio da dor, em dor, em ódio: em ti - para chorares com algo na mão e dizeres, eu tenho isto em mim. Eu tenho isto em mim! Gritar, eu vou morrer por ter, vontade em mim! E te evadires de ti. E não te lembrares de ti. Apenas o amargo da dor, doce por não te veres... fácil para viver: comprimido das horas vagas. E esse ódio a quem o vais servir? Bem no fundo, de nada te vai valer.
Desistes. Gritas, amanhã morri, a voz dessa doença, o teu doce desistir: por te teres em todos, sem te teres em ti. Grita, grita, grita essa voz que se prende, essa palavra que se amarra, e acorda a vontade, e expulsa a tontura que te vai na alma.
Homem, ninguém nos vê dentro de nós.



desenha-se a palavra nos lábios,
expressão imediata da reacção, palavra,
afiguração da imagem, do secreto:
o que está para além da fala, pensamento bruto,
segredo que percorre o cérebro, segredo
que se revela, que existe
por haver também, outro alguém, outra palavra,
um Gil Eanes que além cabo Bojador,
vê mundos a descoberto, vê
em mãos de descobridor, palavras de alguém
que se revela...
palavras de alguém que se revela.

[ escrevo-te: escrevo-nos.]

sábado, 20 de novembro de 2010

escrito XII

rota da dor
[e quem nunca naufragou?]

I

Tempestades salgadas
Nas ondulações da lágrima. Os trovões,
Soares irados do pensamento,
Rebentações do coração em precipitação. A chuva,
Condensação do sentimento, fluido etéreo. Ciclones,
Depressão das palavras, expiral da dor,
Rodopios incessantes da alma.
Descargas eléctricas no corpo.
Sentença final do sorriso,
Desinência do olhar no horizonte,
Carregado, negro
Em constante turvação do olhar salgado,
Inconstante na tempestade.

Som continuado do farol,
Luz artificial, sempre artificial, bailante,
Dançarina tonta que noticia
Os recifes laminados. Coração,
Navegador sem bússola
Carregado nos braços do vento, embalado
Ao colo do mar salgado, perdido,
Capitão sem tripulantes, só
Laceração sentimental, sina da tempestade.

Choros bravios, correntes em remoinho,
Alma sem leme,
Palavras ancoradas,
Rezas sem destino, presas,
No fundo do mar.

Naufrágio.

II

Dor gritada na caravela dos sentidos
Em naufrágio, em coração partido
Nos recifes da realidade:
Lâminas do sonho.

Espuma salgada na rebentação da lágrima.
Corpo inerte ensanguentado,
Corpo à deriva,
Corpo em mar salgado.

Dor sem norte,
Consciente afogado,
Delírios no quase-morte
Do coração que sofre, coração perfurado, coração
De quem não é amado, ouvido,
Lembrado, sonhado,
Querido, chamado,
Sentido, e tudo é,
Dor.

Ao longe a ilha.

III

Água negra, do negro de mim,
Sentimentos de maré forte, tempestuosa,
Dor náufraga, tempestuosa.
E o corpo enrolado na maré,
E o corpo levado na maré,
E o corpo, só corpo, longe de mim,
Longe de mim,
Longe...
Na ilha

Em mim

Em ilha de ser o que não sou,
Capitão de braços fortes, capitão de
Leme na mão, voz de trovão,
Forte, senhor dos sete mares,
Sem coração, pirata,
Ladrão, almas na mão,
Mas não...

Olho-me e sou, só
Em ilha de mim, só
Dor.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

escrito XI

o prédio
[Arredores de Joanesburgo, África do Sul, ano de 2009]


Quarta-feira. Este prédio deixou de ter dono. Peyisai foi morto pelo "Ditador". É uma prática comum nesta zona. Matam o proprietário e tomam o edifício como refém. E somos todos reféns. "O Ditador", nome que lhe veste tão bem a tirania e a frieza por que é conhecido, é o novo proprietário do prédio, das nossas rendas, das nossas vidas. Ostenta os luxos de um tirano que se preocupa não mais do que ele próprio. Vivo num prédio sequestrado que morre à passagem do tempo.

Da minha janela vejo o sol amarrar-se ao horizonte. A brisa quente acaricia-me a face, abraça-me o corpo. No rádio de Rifumo, o vizinho de cima, ouve-se Miriam Makeba. A voz dela ecoa pelos quinze andares do prédio. Khawuleza mama, Khawuleza. Infiltra-se nas fendas. As paredes inclinadas e velhas ganham cor, rejuvenescem. A voz quente de Miriam. Rejuvenescemos. E carrega-nos no seu regaço: enche-nos o coração. E liberta-nos. Ainda hoje, tantos anos depois, para nos libertar. Lá fora as velhas dançam com os pequenos. Apresso-me a descer os dez lanços de escadas que nos separam, para me juntar, sentir essa liberdade, perder-me: esquecer-me: libertar-me. Vou tropeçando no lixo que ao longo do tempo se foi acumulando nas escadas. Já ninguém se interessa. Pelo caminho encontro Boseda. Sorrio-lhe. Sorrimos. Khawuleza mama, Khawuleza. Cantamos e corremos agora os dois entre risos que nos fogem na exaltação do momento. Já no quarto andar, bato à porta da minha amiga Malenga. Continuamos a correr. Malenga corre connosco. As suas imensas tranças negras são vinte mil cavalos que relincham o momento que se faz. Corremos. Eu, Boseda e Malenga. Khawuleza mama, Khawuleza. Cá fora juntamo-nos ao imenso grupo de vizinhos que dançam, que cantam, que partilham um entreacto longe da dureza que nos preenche. Rejuvenescemos. Somos uma imensidão de sensações. Somos unos. Somos tão longe de nós mesmos. Somos puros. Rifumo, no décimo primeiro andar, grita Liberdade! Irmãos, Liberdade. Este prédio é nosso. É preciso tomar medidas irmãos. Liberdade. Gritamos, Liberdade. Khawuleza mama, Khawuleza. A música termina e com ela a exaltação. Voltamos para casa, e levamos a liberdade no pensamento. A nossa vida raptada. A liberdade que se contorce. Um pensamento de ruptura, de revolução. Todos levam em segredo uma vontade incontrolável, quase irascível de mudança. Uma voz muda que se contrai no sufoco da fala. Todos levamos o segredo para casa.

O rádio de Rifumo não toca. Quinta-feira. Malenga entra no meu quarto e conta-me da notícia. Não se dança no pátio. As paredes são velhas e inclinadas. O prédio é cinzento. Rifumo foi encontrado morto na rua. Um tiro na cabeça e outro no peito. O nosso Rifumo. Não choramos. Já não conseguimos chorar. Perdemo-nos nos nossos olhares. Perdemo-nos no avesso de nós mesmas. A indolência que nos amarra. O meu nome é Zahra e vivo num prédio sequestrado que morre à passagem do tempo.


quinta-feira, 18 de novembro de 2010

escrito X

razão

Lavo-me no vento a cada manhã, uivo em rodopio pensamentos verticais ociosos desta vontade carnívora de ser sem pensar. Tenho a razão nas veias, essa rectidão lógica que se espreguiça no corpo e que me turva o coração: mandíbulas da mente que desejam por vontades mecânicas, em sistemas fabris, poluentes da vista, poluentes em mim. Maquinismo.

Ó vento, se tudo isto não é distracção.

Leva-me vento à tua essência solta das correias e cadeados, liberta, pura por seres sem a vontade dos outros, apenas: vento. Leva-me, leva-me, carrega-me no teu colo ao mundo dos naturalismos, onde se pode ser sem querer, sem pensar. Lava-me, lava-me dos mecanismos. Lava-me, lava-me, e leva-me e deixa-me só a alma.



Tenho me sentido, e só sinto
A incerteza de um qualquer sentimento meu.
Quando me posto à janela da alma, e olho
Miragens do tempo, que não cessa,
Demarcar o compasso caótico, alienado,
Da minha desarrumação interior, choro.
Tenho me sentido e sinto-me só.
Tenho-me em noite negra sem luar,
Choro. Choro em constrangimento da incerteza,
Contracção de tudo o que vai em mim,
Expansão inevitável da dor,
Ludibriar da mente, nunca ausente:

Mão de ferro que bate na mesa
Aquilo que é da razão, sem alusão,
Sem sentimento, só equação de mim,
Geometrias da dor.

Choro o oriente ausente, meu
Olhar de frente sem ver com intuição, pessoas
De um cinzento, gente sem sentimento,
Mirar de justificações, lamentações
Mecanismos formatados, sem Oriente, sem
Intuir da alma, onde à janela me posto
E me encontro, cinzento:
Pessoa que caminha sem ver. Doente:

Mão de ferro que bate na mesa
Aquilo que é da razão, sem alusão,
Sem sentimento, só equação de ser,
Geometrias da dor.

Choro uma tempestade, cá dentro
Onde existo sem cor de alguém,
Solução aquosa da aflição, do desalento
Onde me afogo lentamente, silenciosamente
Ao ritmo voraz dos gritos de quem ou quê
Me habita e me invade e me devora
Faculdades do amanhecer – manifestação do renascer
Livre da organização, o primeiro momento,
O primeiro antes de qualquer coisa, antes
Do entender.

Cerra-se o punho na mesa, grave
Sentimento obliterado que se afigura, agora
Matemático. Choro o padecer do meu ser em
Oriente.



quarta-feira, 17 de novembro de 2010

escrito IX

a separação
[23 de Novembro 1966, "Vera Cruz" parte com destino a Angola - campo militar do Grafanil, nos arredores de Luanda]


A madrugada estende-se de forma leve sobre o peito negro da noite. Tocam-se, diluem-se, amarram-se como dois amantes que se despedem num último beijo, numa última carícia, num último fôlego. Um instante, um pequeno instante, tão claro, tão lúcido, tão real. Tão curto. Choram uma despedida envolta no frio dos corações que adormecem exaustos, que se confortam num sono profundo, que se embalam em leves soluçares, que choram: chove. Um pequeno instante que os junta. Um pequeno instante que os separa. Um momento. Tão curto. A madrugada. Noite e dia.


Resolve-se um risco de luz no quarto.
A parede é agora riscada, é agora parede riscada;
Dizes, amo-te meu querido, amo-te para a eternidade.
A parede está riscada de luz, dizes, amo-te até morrer,
Olho a parede enquanto o dizes, amo-te amor, sussurraste.
Ainda te lembras? Usaste a palavra mais uma vez, amo-te mesmo muito.
A parede era agora uma mancha de luz, e tu sabias.
Olhei-te e encontramo-nos no mesmo olhar, tão cheio
Encontramo-nos e não houve qualquer palavra, ali, tão profunda
Não houve palavra para aquilo tudo, não.

Dançamos com o olhar um do outro, tu sabias
A parede erguia-se da penumbra, dançamos.
Lembro-me que sorrias, um sorriso de aguarela,
Um sorriso a duas cores, negro e branco, tu sabias e eu também.
Sabias-me no destino, nessa madrugada. Negro.
Amavas-me ali, sem palavras, amavas-me. Branco.
Um sorriso aguarela, lembro-me, e sabia-o assim
Cheio de dor porque tu, também
Vias a luz na parede;
Vias a hora chegar para me roubar de ti.
Mas sorrias, e sorrias para mim.

Lancei o meu corpo nu sobre o teu, abracei-te
Escondi o olhar húmido no teu ombro, beijaste-me.
Vai correr tudo bem, amor, beijaste-me.
Deixei-me entregue ao silêncio dos teus braços,
Ao momento, na tentativa de atrasar o tempo.
Olhei mais uma vez a parede, manchada, consumida pela luz.
Levantei-me e olhei-te, tu também a olhavas.

Não queria partir, mas nós os dois sabíamos disso.

Quebraste o silêncio, amor vai correr tudo bem, amo-te.
Tu sabias, eu sabia, o mundo sabia, a nossa dor.


terça-feira, 16 de novembro de 2010

escrito VIII

sentidos do amor
[Vai-nos minando o tempo, o tempo - o cancro enorme. Cesário Verde]


Sofia, 38 anos. Hugo, 40 anos.


Do silêncio entre duas pessoas. Cinzento: o mar, o céu. Esse grande horizonte que se confunde, que se enlaça: papel de cenário: o nosso. Ouço gaivotas gritarem loucuras, palavras soltas, declarações de amor, avisos de guerra, o tempo, o mar. Caminhamos, mas não falamos. Fingimo-nos distrair com a locomotiva que atravessa a praia, sob uma fina cortina de chuva. Caminhamos, mas não falas. As palavras parecem pequenos espinhos. Podia dizer-te tanta coisa. São tantas as coisas que deixamos de dizer. As palavras custam a sair, magoam. Não falo. Para trás ficam as nossas pegadas, lado a lado, pequenos vazios que deixamos na areia, a medo. Do silêncio entre duas pessoas, fica o incómodo dessa ausência que se espreguiça no corpo. Receio este nosso destino.


Daniel, 26 anos.

O que me queima, nem eu mesmo sei bem. Uma impossibilidade, por certo. Não sei. Um arrepio que queima. Adormeço na tontura de um pensamento teu só teu. Meu, por ser dentro de mim: teu. Imagino os ensaios possíveis entre os nossos nomes, e dói-me o córtex por tê-los assim, tão frágeis, tão longe da matéria das coisas claras, reais. Dói-me. Dói-me muito. Dói-me mesmo muito. Dói-me tanto: o platonismo das minhas gavetas, o quarto das minhas ficções, a janela que me olha com a realidade nos vidros. Um arrepio em negação. Tenho a paixão pelas coisas, nos olhos. Li há pouco tempo, que o cérebro recebe dois terços de todos os impulsos nervosos, através da visão. É essa, então, a proporção daquilo que me ocupas: a medida do meu olhar. Doem-me os olhos. Doem-me muito os olhos. Doem-me mesmo muito os olhos. Doem-me tanto: ver-te e não te poder contar desta inflamação, ver-te e não te poder tocar, ver-te e saber tudo isto impossível. e dói tanto.


Joana, 14 anos. David, 13 anos.

- Sabes ... amo-te! sussurrou Joana corando as maças do seu rosto
- Amor? Como sabes que me amas?
- Encosta o teu ouvido no meu coração e logo saberás ...
- Está bem! - david desenterrou os pés da areia molhada e logo se encostou contra o peito de joana - ouço apenas o teu coração a bater ... isso não é amar! disse numa inocente indignação de rapazinho enganado.
- Tens de ouvir com atenção ... shiuuuuu, assim não consegues - disse enquanto o abraçava docemente - a cada batida do meu coração podes ouvir o nascimento de uma nova estrela, em cada pausa um sorriso ansioso por te ter sempre comigo, e em cada ciclo todo o Universo a mover-se, pois é sinal que ainda te tenho e só assim este faz sentido.
David sorriu, agora ele também corado.
- Então, eu também te amo!


segunda-feira, 15 de novembro de 2010

escrito VII

o velho tonto e o tempo

Era conhecido como o velho, o velho tonto do oitenta e dois, segundo andar. Poucas vezes saía de casa, tão poucas vezes saía de si próprio. Todos os dias, todas as noites, deixava-se morrer na poltrona verde, gasta, usada: a poltrona dos dias de futebol, das reuniões entre amigos, dos domingos e das certezas que o envolviam, a poltrona das memórias: a família - o aguilhão do tempo. Os filhos, Luzia e Pedro, deixaram de aparecer. Os amigos de se interessar. Afinal, era um velho tolo, que se repetia, que se estranhava, que pouco ou nada dizia, que amava o tempo que já não era o dele. Ai velho tonto, as impossibilidades de te veres inteiro num mundo que te escoa, que te expurga como um cancro, que te obriga a viver no meio, entre as coisas do dia: entre o um e dois, o sim e não, o dentro e o fora, o horizonte e o céu, o inspirar e o expirar, o primeiro e segundo passo, a meia noite e o primeiro minuto do dia, entre dois olhares que se cruzam no acaso, o bem e o mal, a sorte e o azar, o doce e o amargo, a noite e o dia, o sono e o sonho, entre duas pessoas que se aproximam, a primeira e a segunda palavra, a luz e a escuridão, o coração e a razão, a coragem e a cobardia, entre a escolha e a decisão, o silêncio e ruído, a partida e a chegada, entre a mente sã e a loucura, o amor e o ódio, o autor e a obra, entre a vida e a morte, a morte e o nada. Meu deus, a intemporalidade. A mulher faleceu aos setenta anos, mas não naquele segundo andar, não para ele, nunca para ele. Tratava-a carinhosamente por mãe, recorda-se. Sorri. Foi no trinta e um de Janeiro de 2008, uma quinta-feira, que juntos, na cama, trocaram as últimas palavras: Maria, e que belos pequenos trouxemos nós ao mundo. Parece que ainda trago comigo o perfume daquele jardim, onde a medo te convidei para passeares comigo. O sorriso que carregavas quando viste o Pedro pela primeira vez, quando o ouviste pela primeira vez. E a Luzia, o bairro todo comentava a beleza que te herdou. Vencemos Maria, vencemos. Amo-te. As rugas da face, rangem a posição que lhes pertence, num direito ganho pelo peso de uma vida inteira. O sorriso que se dissipa na memória. a memória que se estende na arcada do seu corpo, e o empurra para dentro, para longe, para o silêncio que o viola - o interior do que está circunscrito na forma - para a incerteza das coisas. A decisão. O sonho impaciente de voltar a beijar Maria, de a ter nos braços, de a amar e contar-lhe da saudade, de juntos acompanharem os corações dos filhos. A decisão que se adensa: Maria. Duas pancadas secas na porta interrompem-lhe a acuidade. Quem é? - pergunta numa voz que lhe falha. Abre a porta. Parabéns Arménio: os filhos, os amigos, as cartas, o vinho: o aniversário que se esqueceu. O velho tonto sorri, sorri muito. O velho tonto sorri tanto. Lembraram-se, lembraram-se. Sorri. Chora. Que me esquecia de vocês. Já não vêm visitar o velhote. Senta-se na poltrona, velha, gasta, usada. Pai, estivemos aqui ontem, diz Luzia com o aperto na fala, com o aperto nos olhos para que não se escoem. O velho tonto olha para a janela em silêncio, não fala. O silêncio que o agarra. trocam-se olhares cabisbaixos na sala. Pedro agarra a mão do Pai, fria. Arménio volta-se e olha-o nos olhos. Pergunta-lhe quem é. Arménio chora. Arménio não sorri. Pedro abraça-o e diz-lhe baixinho, estamos aqui Pai, estamos aqui. Feliz aniversário. O velho tonto sorri-lhe, pareces-te com o meu filho Pedro. Queres jogar umas cartas? O meu filho é um excelente companheiro de jogo. Pedro sorri, diz-lhe que sim. Arménio sorri. Sorri muito.

No segundo andar do oitenta dois, o velho tonto diverte-se na sua poltrona com os filhos e os amigos. Arménio não escolheu o Alzheimer, mas nós podemos escolher não o abandonar. Em pequenos gestos, podemos fazer uma vida sorrir, mesmo que por breves instantes.


domingo, 14 de novembro de 2010

escrito VI

marioneta
[Bloco de matéria, preso a cordel, em mãos que não as minhas. ensaios.
]

Ficcionas-me nos teus teatros pessoais. Jogas-me. Prendes-me. Moves-me na imobilidade da minha vontade. Usas-me. Atiras-me. Chamas-me ao palco e aplaudes a coreografia que me obrigaste. Agarras-me. Violas-me com o olhar. Esvazias-me. Sujas-me. Tenho-me na sensação de já não ser, senão, uma extensão tua: marioneta. Forças-me a um sorriso, e dizes baixinho: amo-te. Magoas-me. Usas-me, amor. Gostas que te chame assim, amor. Amo-te, dizes. Amo-te. Amo-te. Amo-te. Amo-te. Amo-te. Amo-te. Amo-te. Amo-te. Amo-te. Amo-te. Desbastas-me com palavras usadas. Amo-te, sorris. Rasgas-me o corpo nessas verdades, esgotadas: ilusões. Amo-te. Não te respondo. Amarras-me, e segredas-me, se me abraçares no fim, dou-te a chave para a rua, não é isso que queres? Choro. Amarras-me. A corda queima-me os pulsos. Choro, e tu sorris. Sorris à ironia da situação. Usas-me enquanto sorris. Vá, abraça-me, berras. Os pulsos em sangue. A corda nos pulsos. Abraça-me, sorris. Não consigo soltar-me. Tu sabes que não. Ris enquanto me vês cada vez mais vazio. Usas-me. Serves-te de mim. Acabas. Murmuras, amo-te. Soltas-me. Desapareces na sombra, como todas as outras noites. Já não me chamas pelo nome. Na verdade, não nos falamos há muito tempo. Desapareces na sombra. O sal cristaliza-se na face. Já não choro. Morro. Todos os dias, morro um bocadinho. Odeio-te por isso. Sei onde guardas o revólver. Tenho-te raiva. Na caixa de sapatos. Seguro o revólver, gemo a emoção da vingança. Já me tiraste tudo. Que diferença faz? Desapareço na sombra. Chamo-te. Olhas-me. Olho-te. Dizemos tudo, ali, num olhar. A tua pele rosa-cançada, rosa-suada. Ardo por dentro. Ainda me doem os pulsos. Queres dizer-me alguma coisa, mas já nem sabes como se fala um sentimento. Mato-te, digo. Os teus olhos abrem-se em força. Mato-te, sorrio. O gatilho. O som grave da decisão. O som ensurdecedor da bala. O revólver no chão, fumegante. Olhas-me. Choras. Olhas-me, envolto no sangue que escorre do meu cérebro, doente de ti. Mato-te, disse-te. Mato-te aos bocadinhos, enquanto morro aos teus olhos. Mato-te devagarinho, lembra-te alguma coisa? Morro.

Soltam-se as linhas da noite,
Desliza o véu no horizonte, lentamente,
Soltam-se os pregos das linhas, levemente:

- Solver subtil da escuridão

Largada dos sonhos,
O despertar.

Sobriedade dos movimentos,
Tombar dos pensamentos, selvagens.
Cena primeira do imediato matutino,
Em palco de nomes,
Palco de caras, palco
De estrelas de cartaz,
Guiões para corações de chumbo,
Encenação de coisa alguma.

E eu, ficção de alguém,
Em película de papel:

- Às mãos de amassar.

[Aguardo-te no horizonte, noite, para que me possuas nos teus mistérios, e me livres das marionetas que me moldam a alma, e me cegam os olhos, no crude ardente da manhã.]