[surrealismos de um tempo não tão irreal]
A Humanidade mudou. Parecem distantes os momentos em que o céu era o limite, em que a longitude entre o sonho e a realidade estava à distancia de um passo em corrida. O Homem desejava, o homem tinha. Não demorou a esse limite reduzir-se ao pleno acto da sobrevivência. Sempre foi um engano descrevermo-nos no topo da cadeia alimentar, quando era o desejo - o tumor do sonho - que nos devorava por dentro, sem olhar a escolhas, valores, sem assentir ao poder, a nomes, cores, e a tantas outras coisas que nos aproximam e nos distanciam, obedecendo apenas à fome e nada mais do que essa necessidade básica: o desejo nunca teve escrúpulos, e a tendência seria o domínio total; insaciável chegaria ao trono da existência, para no fim nos abandonar e nos deixar vazios sem a capacidade de sermos além de nós próprios. Esse dia chegou. Como fomos capazes? Tombamos. Não consigo deixar de pensar na pergunta recorrente, que tantos anos me atormentou: o que é o Homem? Resumo: a existência. São tantas as tangentes, as intercepções que se projectam naturalmente irresolúveis, que me parece tão claro o limite da razão e do incognoscível. Como fomos capazes? O resultado surge-me sempre igual: o Homem sempre foi um ser mutável, numa demanda constante por um ideal, uma forma de estar, uma forma de olhar o horizonte, em ultima análise: o domínio. Mas agora, agora o mundo mudou. Os tempos trouxeram exércitos de um avesso à ordem das coisas. Os medos ganharam forma e passeiam-se livremente nas ruas, nas mãos, nos olhos, na vida. O hoje é agora uma demência num corpo inerte e corrompido desprovido de língua e palavras, repleto de ausências: os espaços negros, os vácuos, os vazios. O amanhã, um pesadelo que se repete noite após noite, como um ceifeiro em época de colheita. O ontem, meu deus, o ontem, um Olimpo tão distante quanto a existência de um deus que ousamos substituir. Bem vindos à 3ª guerra mundial, a guerra onde somos escravos dos nossos próprios demónios interiores, onde já não vivemos sem pensar. Os mecanismos.
António tirou o dia para ele. Só ele. Mais ninguém. Longe do enleio das coisas que o rodeiam: longe dos mecanismos, do sofrimento, dos rendados sociais. Longe, António está longe, muito longe. Hoje o dia é dele, sem disfarces, sem acessórios, sem nada mais do que o seu olhar, o seu coração. António: o olhar, o coração. Veste o seu casaco de Inverno e ruma sem regras, sem obrigações. As ruas são amontoados de lixo, restos de uma revolta morta. Sem forças. As paredes das casas, dos prédios, passam mensagens de indignação, de rebelião: são mensagens mudas. Já ninguém as ouve. A rua está vazia. Continua a caminhar. Recorda-se da guerra. A guerra que levou tudo. A guerra que lavrou o mundo. A guerra que incendiou os corações das pessoas: já nada as espera. Do outro lado da rua, a Sr.ª Isabel caminha de olhar tombado. A pele cinzenta, sem cor. As correntes que lhe agarram o corpo a um amontoado de memórias usadas, a desejos famintos, a pequenos demónios que lhe vão devorando a vida, demorando-a. Vai movendo a cabeça de lado para lado, em ritmos desordenados. António fecha os olhos, e caminha, caminha para não ver mais. Para não cair na mesma demência. Para não sofrer da infecção. Caminha para longe, sem pensar. Abre os olhos. Pára. Á sua frente um vulto negro aproxima-se: o medo. Uma nuvem negra, com correntes que se arrastam no chão. Ouvem-se gritos do seu interior. Culpas. Uma dor multiplicada por outras mil. O medo observa-o. António observa o medo. Lembra-se da filha, que dorme em casa. A sua esperança. A sua vontade. O som ensurdecedor das vozes que exalam da nuvem negra. António caminha com a filha no olhar: a esperança: a vontade. O som das correntes que se afastam. António respira fundo o ar frio da manhã que vai terminando, respira um alívio, respira a filha. Respiram-se. Não receia. Sabe que os medos caminham pelas ruas em busca de hospedeiros. Mas António não receia a infecção. Ainda acredita. Ainda sente a vontade: Marília: a filha: a vontade: a esperança: a sua simbiose. E o medo tem medo da vontade, da esperança. O medo também tem medo. É em si, na sua essência, a sua própria tormenta.
António aproxima-se agora do que era uma praça magnanime. A praça da Vitória: é agora praça derrotada. Uma praça de escombros. Do seu centro, António olha em volta, reavivando as memórias: reconstrói. O teatro, a estação de comboios, o museu. Agora, nada. Apenas escombros. Memórias. Cinzas. Lembra-se quando ali ía com os pais, ao museu. O pai era pintor. A mãe, a sua musa. Juntos eram arte. Uma arte tão cheia de tudo. Sorri esses momentos. A guerra que os levou. Caminha para o que sobra do museu, para junto dos pais. Por entre as paredes tombadas, incompletas, vislumbra um quadro ainda preso ao betão. Observa-o. Perde-se na tinta que o preenche. António perde-se. Perde-se na tela. Na janela, na tela. La Condition Humaine de René Magritte. O mundo que vemos fora de nós mesmo, na nossa condição, nas nossas experiências. A limitação das coisas. O tempo que passa, sem o sentirmos na sua crueza, no seu momento. António perde-se. António respira fundo. Respira a vontade. Respira a esperança. António respira-se. Ele sabe. António sabe que ainda é tempo no tempo que se faz. A esperança.
[Obrigado a todos os Antónios do mundo, por me fazerem acreditar. Obrigado por me fazerem valer de um futuro capaz. Porque na verdade, na verdade, o futuro é o presente que se faz. Que na esperança haja essa vontade de mudar.]
A Humanidade mudou. Parecem distantes os momentos em que o céu era o limite, em que a longitude entre o sonho e a realidade estava à distancia de um passo em corrida. O Homem desejava, o homem tinha. Não demorou a esse limite reduzir-se ao pleno acto da sobrevivência. Sempre foi um engano descrevermo-nos no topo da cadeia alimentar, quando era o desejo - o tumor do sonho - que nos devorava por dentro, sem olhar a escolhas, valores, sem assentir ao poder, a nomes, cores, e a tantas outras coisas que nos aproximam e nos distanciam, obedecendo apenas à fome e nada mais do que essa necessidade básica: o desejo nunca teve escrúpulos, e a tendência seria o domínio total; insaciável chegaria ao trono da existência, para no fim nos abandonar e nos deixar vazios sem a capacidade de sermos além de nós próprios. Esse dia chegou. Como fomos capazes? Tombamos. Não consigo deixar de pensar na pergunta recorrente, que tantos anos me atormentou: o que é o Homem? Resumo: a existência. São tantas as tangentes, as intercepções que se projectam naturalmente irresolúveis, que me parece tão claro o limite da razão e do incognoscível. Como fomos capazes? O resultado surge-me sempre igual: o Homem sempre foi um ser mutável, numa demanda constante por um ideal, uma forma de estar, uma forma de olhar o horizonte, em ultima análise: o domínio. Mas agora, agora o mundo mudou. Os tempos trouxeram exércitos de um avesso à ordem das coisas. Os medos ganharam forma e passeiam-se livremente nas ruas, nas mãos, nos olhos, na vida. O hoje é agora uma demência num corpo inerte e corrompido desprovido de língua e palavras, repleto de ausências: os espaços negros, os vácuos, os vazios. O amanhã, um pesadelo que se repete noite após noite, como um ceifeiro em época de colheita. O ontem, meu deus, o ontem, um Olimpo tão distante quanto a existência de um deus que ousamos substituir. Bem vindos à 3ª guerra mundial, a guerra onde somos escravos dos nossos próprios demónios interiores, onde já não vivemos sem pensar. Os mecanismos.
António tirou o dia para ele. Só ele. Mais ninguém. Longe do enleio das coisas que o rodeiam: longe dos mecanismos, do sofrimento, dos rendados sociais. Longe, António está longe, muito longe. Hoje o dia é dele, sem disfarces, sem acessórios, sem nada mais do que o seu olhar, o seu coração. António: o olhar, o coração. Veste o seu casaco de Inverno e ruma sem regras, sem obrigações. As ruas são amontoados de lixo, restos de uma revolta morta. Sem forças. As paredes das casas, dos prédios, passam mensagens de indignação, de rebelião: são mensagens mudas. Já ninguém as ouve. A rua está vazia. Continua a caminhar. Recorda-se da guerra. A guerra que levou tudo. A guerra que lavrou o mundo. A guerra que incendiou os corações das pessoas: já nada as espera. Do outro lado da rua, a Sr.ª Isabel caminha de olhar tombado. A pele cinzenta, sem cor. As correntes que lhe agarram o corpo a um amontoado de memórias usadas, a desejos famintos, a pequenos demónios que lhe vão devorando a vida, demorando-a. Vai movendo a cabeça de lado para lado, em ritmos desordenados. António fecha os olhos, e caminha, caminha para não ver mais. Para não cair na mesma demência. Para não sofrer da infecção. Caminha para longe, sem pensar. Abre os olhos. Pára. Á sua frente um vulto negro aproxima-se: o medo. Uma nuvem negra, com correntes que se arrastam no chão. Ouvem-se gritos do seu interior. Culpas. Uma dor multiplicada por outras mil. O medo observa-o. António observa o medo. Lembra-se da filha, que dorme em casa. A sua esperança. A sua vontade. O som ensurdecedor das vozes que exalam da nuvem negra. António caminha com a filha no olhar: a esperança: a vontade. O som das correntes que se afastam. António respira fundo o ar frio da manhã que vai terminando, respira um alívio, respira a filha. Respiram-se. Não receia. Sabe que os medos caminham pelas ruas em busca de hospedeiros. Mas António não receia a infecção. Ainda acredita. Ainda sente a vontade: Marília: a filha: a vontade: a esperança: a sua simbiose. E o medo tem medo da vontade, da esperança. O medo também tem medo. É em si, na sua essência, a sua própria tormenta.
António aproxima-se agora do que era uma praça magnanime. A praça da Vitória: é agora praça derrotada. Uma praça de escombros. Do seu centro, António olha em volta, reavivando as memórias: reconstrói. O teatro, a estação de comboios, o museu. Agora, nada. Apenas escombros. Memórias. Cinzas. Lembra-se quando ali ía com os pais, ao museu. O pai era pintor. A mãe, a sua musa. Juntos eram arte. Uma arte tão cheia de tudo. Sorri esses momentos. A guerra que os levou. Caminha para o que sobra do museu, para junto dos pais. Por entre as paredes tombadas, incompletas, vislumbra um quadro ainda preso ao betão. Observa-o. Perde-se na tinta que o preenche. António perde-se. Perde-se na tela. Na janela, na tela. La Condition Humaine de René Magritte. O mundo que vemos fora de nós mesmo, na nossa condição, nas nossas experiências. A limitação das coisas. O tempo que passa, sem o sentirmos na sua crueza, no seu momento. António perde-se. António respira fundo. Respira a vontade. Respira a esperança. António respira-se. Ele sabe. António sabe que ainda é tempo no tempo que se faz. A esperança.
[Obrigado a todos os Antónios do mundo, por me fazerem acreditar. Obrigado por me fazerem valer de um futuro capaz. Porque na verdade, na verdade, o futuro é o presente que se faz. Que na esperança haja essa vontade de mudar.]
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