quarta-feira, 10 de novembro de 2010

escrito II

tempos de crise


Sapateiro. Rua das camélias. Primavera. Guilherme alinha os passos das pessoas, na oficina. Do trisavô para o avô, do avô para o pai, do pai para o filho: Guilherme aprendeu a arte da genealogia, apertou as mãos do passado. Tem tido muito trabalho. Agora é só ele, sozinho. O pai mudou de direcção, vive na rua das chaminés, número trezentos, campa dezanove. O filho de Guilherme, José, não se interessa muito pelo ofício. Passa o tempo agarrado aos livros, quer ser escritor. Ontem, pintor. Anteontem, actor de cinema. A leveza de não ser, ainda, realmente nada. Adelaide, mãe, mulher, faz costura em casa. Maria, filha, irmã, foi com José comprar carne para o almoço. Guilherme liga o rádio, na oficina. Estremece o corpo. Quinta-feira. Desliga o rádio, fecha mais cedo a oficina. Corre. Corre e não olha para trás. Na rua das Camélias, correm as outras pessoas. Fogem de uma notícia, para casa, para os braços da família. Guilherme aguarda o eléctrico, tremem-lhe as pernas. O tempo não é tempo, ali, na paragem. O tempo é o peso de três pessoas no peito: a família. A guerra chegou.

Em tempos de crise enchemos o peito com os que nos são próximos: vivem dentro de nós. Respiramos. Respiramo-nos



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