sexta-feira, 12 de novembro de 2010

escrito IV

verdades que se escondem debaixo do tapete

Domingo, o dia das luxúrias. A manhã faz-se quente. Algumas cartolas descem imperialmente a calçada da praça central para comprarem o jornal. À porta da Igreja, exibindo as novas colecções de domingo, falam as senhoras: são montras. Entrecruzam olhares sedentos de intrigas, de intenções. Os miúdos jogam à bola. As raparigas desenham casas na terra molhada. Nove da manhã. É domingo na vila, nos edifícios, nas pessoas, nas rotinas. É tudo normal. Os miúdos param de jogar á bola. É quase tudo normal. As casas desenhadas na terra, abandonadas. A casa amarela grita. Dois tiros.

Oito da manhã. Madalena olha-se no espelho. No quarto, a luz matutina risca a parede. O reflexo de madalena: rosado. A face brilha a manhã que se faz senhora no rosto de uma menina. Hoje é dia de viagem. Vamos à cidade, pensa enquanto amarra o cabelo com uma flor que apanhou no jardim. Sorri. A flor que segura o cabelo. O cabelo que segura um sorriso. O sorriso que segura uma ideia: a feira popular. O espelho que segura uma face. A face que segura a manhã, que reflecte: um sorriso: uma ideia: uma viagem: a feira popular, vou comer algodão doce. O andar de baixo chora. Madalena desce as escadas devagarinho. O pai. A mão do pai na cara da mamã, vermelha. A outra mão bêbada, fechada, no corpo da mamã, encolhido. Madalena grita. Corre. Agarra a mamã. Choram. Pára, grita Madalena. A mão pesada que agarra os cabelos da filha, que a atira. A flor no chão. A mãe grita. As pétalas brancas no chão, na sala. Chora-se e grita-se no andar de baixo. O revólver. O tiro. O sangue no chão. A flor é agora manchada. O corpo da mãe no chão. Silêncio. Os joelhos do pai, no chão. O revólver na mão bêbada do pai. O dedo no gatilho. O tiro. O corpo do pai no chão. As lágrimas de Madalena diluem o sangue, na cara. A manhã morre na face de Madalena. Agarra-se ao corpo da mamã. Chora. Soluça. Adormece.

A casa amarela cala-se. A vila grita.

Vinte anos depois, Madalena chora na campa da mamã. Os filhos olham a fotografia da avó. Era tão bonita, mamã. Madalena abraça os filhos. Chora. Choram. João e Mariana choram sem saber porquê. Mas a mamã chora. Choram. Domingo. Já não há feira popular na cidade. A vila, as pessoas, os edifícios, as rotinas, são as mesmas. Madalena mudou. A casa amarela é azul e tem janelas verdes. Existem muitas Madalenas no mundo.


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