segunda-feira, 15 de novembro de 2010

escrito VII

o velho tonto e o tempo

Era conhecido como o velho, o velho tonto do oitenta e dois, segundo andar. Poucas vezes saía de casa, tão poucas vezes saía de si próprio. Todos os dias, todas as noites, deixava-se morrer na poltrona verde, gasta, usada: a poltrona dos dias de futebol, das reuniões entre amigos, dos domingos e das certezas que o envolviam, a poltrona das memórias: a família - o aguilhão do tempo. Os filhos, Luzia e Pedro, deixaram de aparecer. Os amigos de se interessar. Afinal, era um velho tolo, que se repetia, que se estranhava, que pouco ou nada dizia, que amava o tempo que já não era o dele. Ai velho tonto, as impossibilidades de te veres inteiro num mundo que te escoa, que te expurga como um cancro, que te obriga a viver no meio, entre as coisas do dia: entre o um e dois, o sim e não, o dentro e o fora, o horizonte e o céu, o inspirar e o expirar, o primeiro e segundo passo, a meia noite e o primeiro minuto do dia, entre dois olhares que se cruzam no acaso, o bem e o mal, a sorte e o azar, o doce e o amargo, a noite e o dia, o sono e o sonho, entre duas pessoas que se aproximam, a primeira e a segunda palavra, a luz e a escuridão, o coração e a razão, a coragem e a cobardia, entre a escolha e a decisão, o silêncio e ruído, a partida e a chegada, entre a mente sã e a loucura, o amor e o ódio, o autor e a obra, entre a vida e a morte, a morte e o nada. Meu deus, a intemporalidade. A mulher faleceu aos setenta anos, mas não naquele segundo andar, não para ele, nunca para ele. Tratava-a carinhosamente por mãe, recorda-se. Sorri. Foi no trinta e um de Janeiro de 2008, uma quinta-feira, que juntos, na cama, trocaram as últimas palavras: Maria, e que belos pequenos trouxemos nós ao mundo. Parece que ainda trago comigo o perfume daquele jardim, onde a medo te convidei para passeares comigo. O sorriso que carregavas quando viste o Pedro pela primeira vez, quando o ouviste pela primeira vez. E a Luzia, o bairro todo comentava a beleza que te herdou. Vencemos Maria, vencemos. Amo-te. As rugas da face, rangem a posição que lhes pertence, num direito ganho pelo peso de uma vida inteira. O sorriso que se dissipa na memória. a memória que se estende na arcada do seu corpo, e o empurra para dentro, para longe, para o silêncio que o viola - o interior do que está circunscrito na forma - para a incerteza das coisas. A decisão. O sonho impaciente de voltar a beijar Maria, de a ter nos braços, de a amar e contar-lhe da saudade, de juntos acompanharem os corações dos filhos. A decisão que se adensa: Maria. Duas pancadas secas na porta interrompem-lhe a acuidade. Quem é? - pergunta numa voz que lhe falha. Abre a porta. Parabéns Arménio: os filhos, os amigos, as cartas, o vinho: o aniversário que se esqueceu. O velho tonto sorri, sorri muito. O velho tonto sorri tanto. Lembraram-se, lembraram-se. Sorri. Chora. Que me esquecia de vocês. Já não vêm visitar o velhote. Senta-se na poltrona, velha, gasta, usada. Pai, estivemos aqui ontem, diz Luzia com o aperto na fala, com o aperto nos olhos para que não se escoem. O velho tonto olha para a janela em silêncio, não fala. O silêncio que o agarra. trocam-se olhares cabisbaixos na sala. Pedro agarra a mão do Pai, fria. Arménio volta-se e olha-o nos olhos. Pergunta-lhe quem é. Arménio chora. Arménio não sorri. Pedro abraça-o e diz-lhe baixinho, estamos aqui Pai, estamos aqui. Feliz aniversário. O velho tonto sorri-lhe, pareces-te com o meu filho Pedro. Queres jogar umas cartas? O meu filho é um excelente companheiro de jogo. Pedro sorri, diz-lhe que sim. Arménio sorri. Sorri muito.

No segundo andar do oitenta dois, o velho tonto diverte-se na sua poltrona com os filhos e os amigos. Arménio não escolheu o Alzheimer, mas nós podemos escolher não o abandonar. Em pequenos gestos, podemos fazer uma vida sorrir, mesmo que por breves instantes.


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