[Arredores de Joanesburgo, África do Sul, ano de 2009]
Quarta-feira. Este prédio deixou de ter dono. Peyisai foi morto pelo "Ditador". É uma prática comum nesta zona. Matam o proprietário e tomam o edifício como refém. E somos todos reféns. "O Ditador", nome que lhe veste tão bem a tirania e a frieza por que é conhecido, é o novo proprietário do prédio, das nossas rendas, das nossas vidas. Ostenta os luxos de um tirano que se preocupa não mais do que ele próprio. Vivo num prédio sequestrado que morre à passagem do tempo.
Da minha janela vejo o sol amarrar-se ao horizonte. A brisa quente acaricia-me a face, abraça-me o corpo. No rádio de Rifumo, o vizinho de cima, ouve-se Miriam Makeba. A voz dela ecoa pelos quinze andares do prédio. Khawuleza mama, Khawuleza. Infiltra-se nas fendas. As paredes inclinadas e velhas ganham cor, rejuvenescem. A voz quente de Miriam. Rejuvenescemos. E carrega-nos no seu regaço: enche-nos o coração. E liberta-nos. Ainda hoje, tantos anos depois, para nos libertar. Lá fora as velhas dançam com os pequenos. Apresso-me a descer os dez lanços de escadas que nos separam, para me juntar, sentir essa liberdade, perder-me: esquecer-me: libertar-me. Vou tropeçando no lixo que ao longo do tempo se foi acumulando nas escadas. Já ninguém se interessa. Pelo caminho encontro Boseda. Sorrio-lhe. Sorrimos. Khawuleza mama, Khawuleza. Cantamos e corremos agora os dois entre risos que nos fogem na exaltação do momento. Já no quarto andar, bato à porta da minha amiga Malenga. Continuamos a correr. Malenga corre connosco. As suas imensas tranças negras são vinte mil cavalos que relincham o momento que se faz. Corremos. Eu, Boseda e Malenga. Khawuleza mama, Khawuleza. Cá fora juntamo-nos ao imenso grupo de vizinhos que dançam, que cantam, que partilham um entreacto longe da dureza que nos preenche. Rejuvenescemos. Somos uma imensidão de sensações. Somos unos. Somos tão longe de nós mesmos. Somos puros. Rifumo, no décimo primeiro andar, grita Liberdade! Irmãos, Liberdade. Este prédio é nosso. É preciso tomar medidas irmãos. Liberdade. Gritamos, Liberdade. Khawuleza mama, Khawuleza. A música termina e com ela a exaltação. Voltamos para casa, e levamos a liberdade no pensamento. A nossa vida raptada. A liberdade que se contorce. Um pensamento de ruptura, de revolução. Todos levam em segredo uma vontade incontrolável, quase irascível de mudança. Uma voz muda que se contrai no sufoco da fala. Todos levamos o segredo para casa.
O rádio de Rifumo não toca. Quinta-feira. Malenga entra no meu quarto e conta-me da notícia. Não se dança no pátio. As paredes são velhas e inclinadas. O prédio é cinzento. Rifumo foi encontrado morto na rua. Um tiro na cabeça e outro no peito. O nosso Rifumo. Não choramos. Já não conseguimos chorar. Perdemo-nos nos nossos olhares. Perdemo-nos no avesso de nós mesmas. A indolência que nos amarra. O meu nome é Zahra e vivo num prédio sequestrado que morre à passagem do tempo.
Quarta-feira. Este prédio deixou de ter dono. Peyisai foi morto pelo "Ditador". É uma prática comum nesta zona. Matam o proprietário e tomam o edifício como refém. E somos todos reféns. "O Ditador", nome que lhe veste tão bem a tirania e a frieza por que é conhecido, é o novo proprietário do prédio, das nossas rendas, das nossas vidas. Ostenta os luxos de um tirano que se preocupa não mais do que ele próprio. Vivo num prédio sequestrado que morre à passagem do tempo.
Da minha janela vejo o sol amarrar-se ao horizonte. A brisa quente acaricia-me a face, abraça-me o corpo. No rádio de Rifumo, o vizinho de cima, ouve-se Miriam Makeba. A voz dela ecoa pelos quinze andares do prédio. Khawuleza mama, Khawuleza. Infiltra-se nas fendas. As paredes inclinadas e velhas ganham cor, rejuvenescem. A voz quente de Miriam. Rejuvenescemos. E carrega-nos no seu regaço: enche-nos o coração. E liberta-nos. Ainda hoje, tantos anos depois, para nos libertar. Lá fora as velhas dançam com os pequenos. Apresso-me a descer os dez lanços de escadas que nos separam, para me juntar, sentir essa liberdade, perder-me: esquecer-me: libertar-me. Vou tropeçando no lixo que ao longo do tempo se foi acumulando nas escadas. Já ninguém se interessa. Pelo caminho encontro Boseda. Sorrio-lhe. Sorrimos. Khawuleza mama, Khawuleza. Cantamos e corremos agora os dois entre risos que nos fogem na exaltação do momento. Já no quarto andar, bato à porta da minha amiga Malenga. Continuamos a correr. Malenga corre connosco. As suas imensas tranças negras são vinte mil cavalos que relincham o momento que se faz. Corremos. Eu, Boseda e Malenga. Khawuleza mama, Khawuleza. Cá fora juntamo-nos ao imenso grupo de vizinhos que dançam, que cantam, que partilham um entreacto longe da dureza que nos preenche. Rejuvenescemos. Somos uma imensidão de sensações. Somos unos. Somos tão longe de nós mesmos. Somos puros. Rifumo, no décimo primeiro andar, grita Liberdade! Irmãos, Liberdade. Este prédio é nosso. É preciso tomar medidas irmãos. Liberdade. Gritamos, Liberdade. Khawuleza mama, Khawuleza. A música termina e com ela a exaltação. Voltamos para casa, e levamos a liberdade no pensamento. A nossa vida raptada. A liberdade que se contorce. Um pensamento de ruptura, de revolução. Todos levam em segredo uma vontade incontrolável, quase irascível de mudança. Uma voz muda que se contrai no sufoco da fala. Todos levamos o segredo para casa.
O rádio de Rifumo não toca. Quinta-feira. Malenga entra no meu quarto e conta-me da notícia. Não se dança no pátio. As paredes são velhas e inclinadas. O prédio é cinzento. Rifumo foi encontrado morto na rua. Um tiro na cabeça e outro no peito. O nosso Rifumo. Não choramos. Já não conseguimos chorar. Perdemo-nos nos nossos olhares. Perdemo-nos no avesso de nós mesmas. A indolência que nos amarra. O meu nome é Zahra e vivo num prédio sequestrado que morre à passagem do tempo.
Acho que moro num prédio desses!
ResponderEliminarParabéns!
Consegues descrever, como poucos, sentimentos que nos fazem sentir e realidades que nos fazem viver.