quarta-feira, 24 de novembro de 2010

escrito XVI

limbo. surrealismos
[serve-me pouco, hoje, a imaginação. ainda assim, mantenho o desafio]


Existem momentos na vida, essas pequenas telas do olhar, onde nos pintamos na periferia de um foco visual, presos numa moldura que nos sufoca, deslocados em ambientes controlados, porosos, num espaço, num tempo. Pedro era o risco que não era contorno, a cor que não era forma, o traço que não era composição: Pedro não era. Como as mãos, os dias envelheciam com ele, ganhavam o calo de uma vida: o suor das rotinas. Morriam juntos. Acordava com o raiar do dia, no campo, na terra. O dia era a lavoura.


A manhã é intensa, quente. O arado embateu contra algo submerso na terra. O arado não se move, quebra a rotina. Pedro empurra, grita ao animal que o puxe. O arado não se move, o burro não se move, a terra não se move.


Pedro já foi casado. Aconteceu tudo muito rápido. Pedro já teve filhos. A vida foi um segundo. A manhã começava na mesa, em família. Tudo o que tem início, conhece um fim. O café com leite, o pão, os sorrisos de um dia que começava todas as manhãs na mesa de madeira da avó. As manhãs também têm um fim. Tudo fazia sentido, haviam propósitos, vontades servidas pelo amor.

Mergulha as mãos na terra. O calor nas costas, gastas, velhas, suadas: o corpo também chora. O burro deita-se na terra, descansa. O arado não se move. Pedro cava. As mãos são calejadas. O corpo debruçado em esforço, chora.

No final da estação, dois terços do cultivo eram entregues ao dono da propriedade. O sacrifício da lavoura era obrigatório, trazia um telhado, um prato na mesa. Foi a terra dos pais, dos avós. Com a peste negra, já não havia dinheiro guardado por debaixo do soalho do quarto dos pais, haviam apenas papeis, dívidas. Da noite para o dia, todo o esforço de uma geração conheceu novo proprietário. Conheceu uma corrida contra o tempo, contra a tirania de um soberano. Aconteceu tudo muito rápido.


Pedro levanta-se. Soltam-se rios dos olhos. A água percorre a face pálida, cai na terra. Da terra nascem memórias a preto e branco, semitransparentes. Têm raízes. À sua volta uma floresta de memórias, agarradas ao chão. Os pais, os avós. Crescem no sal das lágrimas. Do buraco cavado, brotam os filhos, a mulher. Têm buracos no peito, na cabeça. Os braços são ramos que o agarram, que o arranham: têm espinhos. O sangue na terra. Crescem três homens do vermelho turvo. Pedro chora. Crescem com raízes que o prendem ao chão. Olha à sua volta. O burro é agora cavalo, montado pelo soberano, que sorri. O soberano sorri. Os três homens disparam contra Pedro. Abrem-se buracos na carne. Os braços da família, as raízes. Pedro resiste. As raízes que o puxam para a terra. Pedro vê a família no buraco, morta. Pedro vê-se, morto. Foi tudo tão rápido. O arado não se move. Por debaixo da terra, Pedro, a mulher, os filhos, não se movem.

A época não foi produtiva. Não tinham cultivo suficiente para pagar ao senhor da terra. A mulher chorava. Os filhos não compreendiam. Pedro, lá fora, sangrava das mãos, puxava ele o arado. Não parava. No pensamento o amor pela família. Pedro sangrava o inevitável. Foi tudo tão rápido.

O arado não se move. Na terra cavada, jaz Pedro e a família. Pedro encontrou-se.


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