[tanta a tristeza, inerte e voraz. tão sentida: molesta tristeza. e o tempo que não olha para trás, não me devolve o que ficou: - devolve-me a vontade para não viver na saudade. leva-me o tempo.]
28 de Dezembro. Quando acordei pela primeira vez, dias antes de fazer dez anos, apercebi-me. E que miséria. O despertar de um primeiro sono. Foi por essa altura que o quotidiano deixou de ser tão embriagado, imperceptível. A inocência rainha, fez-me bastardo. Abraçou-me a lucidez. Lembro das últimas palavras, das últimas imagens. A minha irmã penteava-lhe o cabelo, sorria, não desconfiava. Ele sorria. Sorria-lhe. Sorriam. A minha mãe olhava para nós, sobre a escuridão do pequeno quarto onde vivíamos. Não sei em que pensava. Doía-me o coração pensa-la sofrer, e talvez por isso a imaginasse ali apenas para nós, forte, que sofria mas suportaria a nossa dor no que se adivinhava. O meu pai morreu nessa manhã de inverno. O pai adormeceu, dizia Madalena enquanto lhe acarinhava o cabelo. Corri para a minha mãe. Chorei o dia todo. Madalena não compreendia. Chorava também por me ver chorar. Tinha seis anos. A minha mãe não chorava. Os seus braços, magros, agarravam-nos, envolviam-nos numa força que não tinham. Com a cabeça pousada sobre a minha, olhava para o vazio. Era um olhar pesado, um olhar tão cheio de tudo: o passado, o presente, o futuro. Um olhar que tremia, porque os fortes também tremem, também temem, também questionam. O pai adormeceu. Cuida da tua irmã e da tua mãe. As palavras cortavam todas as coisas em que acreditava. As coisas fáceis, simples, fantasiosas: os pequenos impérios sobre o meu domínio feudal nas terras da escuridão por debaixo da minha cama, os cavaleiros negros que habitavam o armário, a bruxa má de cabelos ruivos chamada Madalena a irmã, a intemporalidade. O pai adormeceu. As suas memórias enchiam-nos o peito, mas não respirávamos. Madalena sorria uma inocência tão bela, tão cristalina. Eu chorava. Não tardou a Madalena chorar também. A mãe não sorria. A mãe não chorava. Foi a primeira vez que vi alguém morrer: o meu pai: a minha mãe: a minha irmã: eu. Cada um de nós morreu um pouco naquela manhã cinza de Dezembro. Acordei quando o meu pai adormeceu. Desde então, tudo se complicou. O quarto, que era pequeno, tornara-se numa grande despesa para a minha mãe. Na realidade não era bem um quarto, mas sim um sótão alugado por alguns tostões na Rua das Flores. Ironicamente, as flores já não eram suficientes para as despesas. A minha mãe era florista, mas não uma florista qualquer como as que víamos à porta do cemitério, ou no mercado. Cada arranjo contava uma história, cada flor um segredo em verso, cada pétala uma palavra, cada essência uma epopeia magna das coisas que não ousamos dar nome. Mas as flores já não eram suficientes. Assim como o ar já não era suficiente. As lágrimas. As sensações. Os gestos. As palavras. Já nada era suficiente. Morremos naquela manhã para acordarmos.
Desde cedo comecei a compreender o poder, a importância, a dependência, a força que uma pessoa pode ter sobre outra. O quão fácil é para duas pessoas se destruírem, mesmo sem o desejarem ou consentirem. Era tudo um jogo de dependências, como se as relações pudessem exercer uma força gravítica nos intervenientes, que se quebrada ou modificada, pudesse alterar ou influir na movimentação, no equilíbrio dos corpos, atingindo-lhes o núcleo: o estado de espírito, de consciência na imensidão de um universo composto pelas ausências: propulsores de actividade. Seriam portanto as relações puras reacções físico-químicas, como os astros. O meu pai era uma estrela a centenas de anos luz, morta. No entanto, para nós, dentro de nós, ainda existia. A luz dele ainda nos atingia o peito, numa angústia, numa beleza estranha de o termos. Uma luz tão cheia de vazios, que projectava o passado. O meu pai era uma estrela morta como todas as outras que víamos no céu. O passado que envolve o presente: o céu: o meu pai.
Não passou muito tempo até sairmos do prédio gasto e esguio, das ruas cinzentas e frias, dos pequenos sítios, dos pequenos momentos. A loja da mãe fechou. Dia 2 de Janeiro. Sábado. Partimos. A mãe trancou a porta. Lembro-me de a ver nervosa, acelerada, nessa última manhã que víamos nascer, que víamos morrer, no Porto. Cada frase que dizia, imediatamente a repetia em tom baixo, como se falasse para nós e depois para ela mesma numa demanda por um conforto que não tinha, uma voz que lhe faltava: o pai. Vamos lá, vamos lá para a estação. Já nada nos espera aqui. Nada nos espera. Vamos lá. Eu segurava um ramo muito bonito feito por ela, para dar à minha avó na chegada. Como a estação de comboio ficava mesmo ao lado de casa, ainda tivemos tempo de comer uns torrões oferecidos pela D.ª Lucinda que os vendia junto da bilheteira. Lá nos esperava, envergando o seu habitual vestido vermelho às pintas brancas, que lhe cobria o corpo inchado. Ela e a mãe trocaram um longo olhar em silêncio, um silêncio cheio de palavras que custavam, que queimavam. Abraçou-a. Vocês venham-me visitar suas pestes. Beijou-nos aos dois. Beijou a minha mãe. Á socapa deixou-lhe um saquinho com notas no bolso do casaco de ganga. Adeus minha querida. Vem visitar-me. Vamos todos ter muitas saudades. Já sabes que as portas de minha casa estão sempre abertas. A minha mãe sorriu, sem sorrir de verdade. O rosto chorava, mas não lhe via lágrimas. Agora sei que chorava por dentro. Que o corpo era um oceano de memórias onde se afogava, onde lutava para manter a cabeça firme, fora de água, para respirar, para sobreviver. Às 9:15 chegava o nosso comboio. Finalmente ouvia-se a voz da menina da bilheteira ecoar na estação: o comboio preparava-se para partir. A Madalena saltava de alegria. Lembro-me tão bem. Carregava uma mochila cor de rosa nas costas com alguma roupa e as suas duas bonecas favoritas: Anita e Joana, as suas boas amigas de chá. Anda mano. Corre, que já nada nos espera aqui, vamos lá. Para Madalena era tudo tão perfeito, tão entusiasmante. Receava que perguntasse pelo pai. Já era habitual o pai não ir connosco visitar a avó, por isso não estranhava; mas agora o nunca pareceu-me tempo a mais. A D.ª Lucinda chorava. Adeus meus queridos. Foram as últimas palavras que ouvi na partida. As últimas palavras que ouvi da amiga da mãe. A Lucinda dos torrões, era assim que a chamavam na rua. Era o nome de guerra. Foi a última vez que vi a Lucinda dos torrões. Adeus Lucinda.
[para continuar]
28 de Dezembro. Quando acordei pela primeira vez, dias antes de fazer dez anos, apercebi-me. E que miséria. O despertar de um primeiro sono. Foi por essa altura que o quotidiano deixou de ser tão embriagado, imperceptível. A inocência rainha, fez-me bastardo. Abraçou-me a lucidez. Lembro das últimas palavras, das últimas imagens. A minha irmã penteava-lhe o cabelo, sorria, não desconfiava. Ele sorria. Sorria-lhe. Sorriam. A minha mãe olhava para nós, sobre a escuridão do pequeno quarto onde vivíamos. Não sei em que pensava. Doía-me o coração pensa-la sofrer, e talvez por isso a imaginasse ali apenas para nós, forte, que sofria mas suportaria a nossa dor no que se adivinhava. O meu pai morreu nessa manhã de inverno. O pai adormeceu, dizia Madalena enquanto lhe acarinhava o cabelo. Corri para a minha mãe. Chorei o dia todo. Madalena não compreendia. Chorava também por me ver chorar. Tinha seis anos. A minha mãe não chorava. Os seus braços, magros, agarravam-nos, envolviam-nos numa força que não tinham. Com a cabeça pousada sobre a minha, olhava para o vazio. Era um olhar pesado, um olhar tão cheio de tudo: o passado, o presente, o futuro. Um olhar que tremia, porque os fortes também tremem, também temem, também questionam. O pai adormeceu. Cuida da tua irmã e da tua mãe. As palavras cortavam todas as coisas em que acreditava. As coisas fáceis, simples, fantasiosas: os pequenos impérios sobre o meu domínio feudal nas terras da escuridão por debaixo da minha cama, os cavaleiros negros que habitavam o armário, a bruxa má de cabelos ruivos chamada Madalena a irmã, a intemporalidade. O pai adormeceu. As suas memórias enchiam-nos o peito, mas não respirávamos. Madalena sorria uma inocência tão bela, tão cristalina. Eu chorava. Não tardou a Madalena chorar também. A mãe não sorria. A mãe não chorava. Foi a primeira vez que vi alguém morrer: o meu pai: a minha mãe: a minha irmã: eu. Cada um de nós morreu um pouco naquela manhã cinza de Dezembro. Acordei quando o meu pai adormeceu. Desde então, tudo se complicou. O quarto, que era pequeno, tornara-se numa grande despesa para a minha mãe. Na realidade não era bem um quarto, mas sim um sótão alugado por alguns tostões na Rua das Flores. Ironicamente, as flores já não eram suficientes para as despesas. A minha mãe era florista, mas não uma florista qualquer como as que víamos à porta do cemitério, ou no mercado. Cada arranjo contava uma história, cada flor um segredo em verso, cada pétala uma palavra, cada essência uma epopeia magna das coisas que não ousamos dar nome. Mas as flores já não eram suficientes. Assim como o ar já não era suficiente. As lágrimas. As sensações. Os gestos. As palavras. Já nada era suficiente. Morremos naquela manhã para acordarmos.
Desde cedo comecei a compreender o poder, a importância, a dependência, a força que uma pessoa pode ter sobre outra. O quão fácil é para duas pessoas se destruírem, mesmo sem o desejarem ou consentirem. Era tudo um jogo de dependências, como se as relações pudessem exercer uma força gravítica nos intervenientes, que se quebrada ou modificada, pudesse alterar ou influir na movimentação, no equilíbrio dos corpos, atingindo-lhes o núcleo: o estado de espírito, de consciência na imensidão de um universo composto pelas ausências: propulsores de actividade. Seriam portanto as relações puras reacções físico-químicas, como os astros. O meu pai era uma estrela a centenas de anos luz, morta. No entanto, para nós, dentro de nós, ainda existia. A luz dele ainda nos atingia o peito, numa angústia, numa beleza estranha de o termos. Uma luz tão cheia de vazios, que projectava o passado. O meu pai era uma estrela morta como todas as outras que víamos no céu. O passado que envolve o presente: o céu: o meu pai.
Não passou muito tempo até sairmos do prédio gasto e esguio, das ruas cinzentas e frias, dos pequenos sítios, dos pequenos momentos. A loja da mãe fechou. Dia 2 de Janeiro. Sábado. Partimos. A mãe trancou a porta. Lembro-me de a ver nervosa, acelerada, nessa última manhã que víamos nascer, que víamos morrer, no Porto. Cada frase que dizia, imediatamente a repetia em tom baixo, como se falasse para nós e depois para ela mesma numa demanda por um conforto que não tinha, uma voz que lhe faltava: o pai. Vamos lá, vamos lá para a estação. Já nada nos espera aqui. Nada nos espera. Vamos lá. Eu segurava um ramo muito bonito feito por ela, para dar à minha avó na chegada. Como a estação de comboio ficava mesmo ao lado de casa, ainda tivemos tempo de comer uns torrões oferecidos pela D.ª Lucinda que os vendia junto da bilheteira. Lá nos esperava, envergando o seu habitual vestido vermelho às pintas brancas, que lhe cobria o corpo inchado. Ela e a mãe trocaram um longo olhar em silêncio, um silêncio cheio de palavras que custavam, que queimavam. Abraçou-a. Vocês venham-me visitar suas pestes. Beijou-nos aos dois. Beijou a minha mãe. Á socapa deixou-lhe um saquinho com notas no bolso do casaco de ganga. Adeus minha querida. Vem visitar-me. Vamos todos ter muitas saudades. Já sabes que as portas de minha casa estão sempre abertas. A minha mãe sorriu, sem sorrir de verdade. O rosto chorava, mas não lhe via lágrimas. Agora sei que chorava por dentro. Que o corpo era um oceano de memórias onde se afogava, onde lutava para manter a cabeça firme, fora de água, para respirar, para sobreviver. Às 9:15 chegava o nosso comboio. Finalmente ouvia-se a voz da menina da bilheteira ecoar na estação: o comboio preparava-se para partir. A Madalena saltava de alegria. Lembro-me tão bem. Carregava uma mochila cor de rosa nas costas com alguma roupa e as suas duas bonecas favoritas: Anita e Joana, as suas boas amigas de chá. Anda mano. Corre, que já nada nos espera aqui, vamos lá. Para Madalena era tudo tão perfeito, tão entusiasmante. Receava que perguntasse pelo pai. Já era habitual o pai não ir connosco visitar a avó, por isso não estranhava; mas agora o nunca pareceu-me tempo a mais. A D.ª Lucinda chorava. Adeus meus queridos. Foram as últimas palavras que ouvi na partida. As últimas palavras que ouvi da amiga da mãe. A Lucinda dos torrões, era assim que a chamavam na rua. Era o nome de guerra. Foi a última vez que vi a Lucinda dos torrões. Adeus Lucinda.
[para continuar]
Sem comentários:
Enviar um comentário