sexta-feira, 26 de novembro de 2010

escrito XVIII

Judite Tola
[na esfera das coisas que se mutam, fica a essência]


Judite é a leveza. Na aldeia era conhecida como Judite Tola. Dizem que a parteira a deixou cair quando nasceu, ao que Filomena jura, pela alma da minha mãezinha, não ter cometido tal distracção. Judite é a inocência. Órfã de pais, diz o senhor Joaquim, órfã de pais e cabecinha, lá vai vivendo com a tia Teresa, que lhe ficou de encargo quando a irmã lhe faleceu. Judite é a simplicidade das coisas. Judite Tola encarrega-se de todas as tarefas em casa. Judite Varre. Judite lava. Judite limpa. Judite cozinha. Judite semeia. Judite colhe. Judite dá de comer aos animais. Judite. Judite. Judite. Ao contrário do que todos imaginam e comentam, Judite não é a gata borralheira: porque sorri. Porque vive num tempo diferente de todos os outros. Porque não quer ser mais além de quem é, hoje. Porque é feliz. Porque é tonta. Ao primeiro rasgo de luz da manhã, levanta-se e vai dar de comer aos animais. Começa pelas galinhas, depois pelo porco, conversa com o burro e termina com a vaca Arlinda. E sorri. Assim terminada a tarefa, apressa-se à padaria do Berto para comprar pão para o pequeno almoço da tia. Veste uma saia muito mal tratada de um tom violeta, uma camisola de um amarelo já devorado pelo tempo, e umas sandálias que já mais parecem uns chinelos. Que já não se prendem a nada. Descabelada, pega na sua bicicleta amarela, e pedala enquanto entoa uma música que nunca ouviu. Uma música que lhe surge. Judite é a música. Judite Tola não fala, apenas se exterioriza em expressões: em olhares, em sorrisos, em gestos, em vontades. O sino pregado à porta badala, e Berto sabe que são quatro pães. Judite Tola é sempre a primeira a entrar na padaria. O Berto sabe que são quatro pães. Judite sorri com o seu olhar amêndoa e tão cheio de tudo o que a rodeia, enquanto pousa alguns tostões na banca. O dia nos olhos. Bom dia Judite. Manda os meus cumprimentos à tua tia. Judite acena-lhe com um sim e, ainda mais descabelada da viagem, faz o sino badalar uma vez mais. Monta a bicicleta rumo a casa, rumo ao pequeno almoço, rumo às tarefas que lhe faltam, rumo à tia. Judite é o dia. Berto sorri de soslaio. Na aldeia toda a gente gosta de Judite. Guardam-lhe um sentimento de compaixão, pela perda. Judite é a aldeia. O seu cabelo comprido, descabelado, esvoaça. O pão na cesta da bicicleta. As sandálias que já não se prendem, que são chinelos. O caminho em terra. Judite entoa uma música. Cruza-se pelas meninas da grande casa. A casa dos Kayser. A casa da luxurias. Lá vai a pobre coitada. Olha para ela, toda descabelada. Riem-se. O buraco no caminho de terra. Judite cai. As meninas Kayser riem-se muito. soltam gargalhadas insufladas em troça. Silêncio. Judite pousa a mão no joelho, que lhe arde. A bicicleta no chão. O pão espalhado pela terra. O pequeno almoço da tia. As meninas estendem-lhe a mão. Judite Tola estende a mão para se levantar. As meninas Kayser voltam a rir-se muito. Achas que te tocamos descabelada? Ainda apanhamos bichos! Riem-se tanto. Viram costas em direcção ao seu caminho. Judite descabelada, Judite destrambelhada. Judite descabelada, Judite destrambelhada. Judite descabelada, Judite destrambelhada. Cantam, enquanto se afastam. Judite é o silêncio. Levanta-se, agarra na bicicleta, no pão. Caminha para casa. Judite não entoa uma música. Judite não segura o dia nos olhos. Judite vai pesada. O tempo são meses nos dois minutos que a separam do destino. Tomba a bicicleta no jardim. Limpa o pão. A saia violeta, rasgada. A camisola que já não era amarela, enlameada. Barra o pão em compota, muita compota, para disfarçar o sabor a terra. O chã que ferve. Bom dia minha querida. A tia senta-se à mesa. Judite pousa o pequeno almoço. Não sorri. Não olha a tia. Sai imediatamente da cozinha para dar de beber ao burro. Para fugir da vergonha que a embebeda, da raiva que a embebeda, da tristeza que a embebeda. São tudo coisas novas para Judite. São tudo sensações que a embebedam, e a destroem, por dentro. Atira o balde para o poço, para o encher, para dar de beber ao burro. O seu reflexo na água. O reflexo de uma face suja em lama. Judite vê-se descabelada. Uma lágrima que se funde na água. É agora água salgada. Judite. O reflexo de Judite Tola. A inocência que se vaza. Perde-se no seu olhar. Judite não dá de beber ao burro. Corre. Corre muito. Judite corre tanto. Judite corre uma fúria que lhe carbura o corpo. O caminho de terra. A inocência que fica para trás, no balde, na água, no reflexo. Judite Tola corre muito. Respira ofegantemente. Não entoa uma música. As sandálias que se soltam dos pés, que ficam para trás. Os pés na terra enlameada. A raiva. Judite é a raiva. A fúria. Judite é a fúria. No horizonte as meninas Kayser. Nos olhos de Judite as meninas Kayser, perdidas entre uma mão cheia de sensações que Judite Tola desconhecia. Judite aproxima-se das meninas. Grita. Grita muito. Judite Tola grita numa voz que nunca ninguém lhe ouviu. Judite grita tanto. Atira-se para cima das meninas. Berra. Grita. Berram. Gritam. As mãos de Judite nos cabelos das meninas. Os cabelos são, agora, descabelados. São agora cabelos descabelados. O das meninas, o de Judite. O Berto apressa-se a separa-las. As mãos de Judite não largam os cabelos das meninas, que berram, que choram. Judite ri-se. Judite ri-se muito. Judite Tola ri-se tanto. A fúria que lhe tolda o pensamento. A raiva que lhe bombeia o sangue, nas veias. Pela primeira vez, Judite fala: Descabeladas. Descabeladas. Descabeladas. Grita, Descabeladas. Descabeladas. Descabeladas. A cara de espanto de Berto. A voz de Judite. As caras de espanto das meninas descabeladas. Berto ri-se. Berto ri-se muito. Berto ri-se tanto. As meninas no chão, descabeladas. As faces molhadas em lama, em lágrimas. Judite aproxima-se das meninas. Estende-lhes a mão. Levanta-as. Judite Sorri. Judite olha-as nos olhos. Limpa-lhes a cara. As meninas envergonhadas. Vira costas e volta para casa, entoando uma música, uma inocência que se devolve. Judite, grita uma das meninas, queres vir brincar connosco? Judite sorri. Judite sorri muito. Judite sorri tanto. Acena que sim. Judite Tola sorri.

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