terça-feira, 7 de dezembro de 2010

escrito XXIX

despertador

Despertar o silêncio em trago bruto deste soro turvo, amargo, da prima-matéria dos sentimentos sem rumo e sem nome... despertar o vazio sem forma, sem cor ou som, apenas o sem e o com e mais nada em tudo sem mais nada, só vazio, só silêncio; presença que se estende pelo átrio, sobre tapete vermelho, centrado em abstractos corpos de betão que pesam em mim, em alma; desfilam e doem sabendo-me (vazio).

Despertar tem preço até na mais pobre presença. Tenho apenas uma alma que nunca ganhei, vazia, e por isso escrevo para a decorar. Talvez assim o silêncio fale, por saber que lhe escrevo. Ordeno-lhe a forma e quando me falar, torno-me vazio, cuspo-o de mim.

desperto.


- Eu acho que ele perdeu o norte dos sentidos. No fundo, acho que se perdeu. E como sabes, quem se perde de si mesmo, perde-se dos outros. Achas que morre?

- Não, não morre nos outros. Bem, morre um pouquinho. Mas ele sabe isso?

- Que morreu, ou que morre ?

- Que se perdeu!

- Sabe, ele sabe. Mas não tem como não morrer. A não ser que se encontre.


- Ele? Já não tem olhar para isso. Não lhe viste os olhos? Tão vazios, tão vazios... Já não vêm muito.

- Tens razão.
- Será coração?
- Coração?

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

escrito XXVIII

quero-te
[olhar para dentro em voz alta: digo-te do devaneio. existe uma tendência especial no silêncio individual - o interior do que está circunscrito na forma - para a incerteza das coisas. é assim o interior - quem nós somos realmente - o avesso de quem não somos - por fora. Aí, no âmago, não existem limites ou medidas. a confusão, portanto, é semente adubada em nós, que germina aquando da percepção da individualidade, no avesso da nossa forma exterior. por isso somos tanto por dentro. por isso o silêncio trás facas na mão. por isso a realidade dói nas leis que a compreendem, que nos prendem . um não poder de ser todo, para fora. e fica o silêncio das palavras que não se trocam. das histórias que não se lêem. Digo-te da evasão.]

A noite abraça-o e torna-o só, no negro de quem se deita na cama do desejo: a doença que o aflige por dentro, que o abre. Recorda os olhares, morre. Recorda o sorriso, morre. Recorda o som da voz, morre. E a recordação é o que os aproxima, e a recordação é o que o mata. o tempo vincado na pele. Chora. A razão é que o sufoca. Morre um pouquinho mais. Ele sabe. Ele sabe. Ele sempre soube: o medo de sentir, e sofre. O amor é uma doença degenerativa, quando desejado. o olhar que o absorve e não lhe permite desviar, pestanejar: cada segundo conta para trazer para casa a ilusão nos olhos.

[Desejar quem não se pode ter: a fórmula perfeita para a infelicidade: o ardor no cérebro, nas noites de solidão]


domingo, 5 de dezembro de 2010

escrito XXVII

avesso

Como queria que sofressem a minha ausência, não porque vos desejo ver sofrer, mas porque afinal fui alguém sem notar.
Fica-me o silêncio.

Tocou o céu e o inferno, na noite
Na escuridão de encantos e tremores
Rasgou-se da vida

Ali, rasgado e largado
De alma, amputado, sangrado
Coração em pó, ardido:
Doença degenerativa do sentimento.

Noite de luto, sem lua, nua
Que o abraça no profundo,
E o veste de escuro, e o engole
Na imensidão da eternidade.

Mármores frias das campas de quem se entregou
Flores secas de quem se esqueceu,
E uma foto, não mais que foto, não mais
Memória de alguém.

Choveu água fria, nesse dia, recordo
Olhares diluídos, rios para a imensidão da terra
Da imensidão da dor, de quem
Por olhares se escondeu, do olhar preso de quem

Agora é ninguém,
Na mármore, onde alguém
Jaz morto.

sábado, 4 de dezembro de 2010

escrito XXVI

4 de Dezembro de 2023
[surrealismos de um tempo não tão irreal]

A Humanidade mudou. Parecem distantes os momentos em que o céu era o limite, em que a longitude entre o sonho e a realidade estava à distancia de um passo em corrida. O Homem desejava, o homem tinha. Não demorou a esse limite reduzir-se ao pleno acto da sobrevivência. Sempre foi um engano descrevermo-nos no topo da cadeia alimentar, quando era o desejo - o tumor do sonho - que nos devorava por dentro, sem olhar a escolhas, valores, sem assentir ao poder, a nomes, cores, e a tantas outras coisas que nos aproximam e nos distanciam, obedecendo apenas à fome e nada mais do que essa necessidade básica: o desejo nunca teve escrúpulos, e a tendência seria o domínio total; insaciável chegaria ao trono da existência, para no fim nos abandonar e nos deixar vazios sem a capacidade de sermos além de nós próprios. Esse dia chegou. Como fomos capazes? Tombamos. Não consigo deixar de pensar na pergunta recorrente, que tantos anos me atormentou: o que é o Homem? Resumo: a existência. São tantas as tangentes, as intercepções que se projectam naturalmente irresolúveis, que me parece tão claro o limite da razão e do incognoscível. Como fomos capazes? O resultado surge-me sempre igual: o Homem sempre foi um ser mutável, numa demanda constante por um ideal, uma forma de estar, uma forma de olhar o horizonte, em ultima análise: o domínio. Mas agora, agora o mundo mudou. Os tempos trouxeram exércitos de um avesso à ordem das coisas. Os medos ganharam forma e passeiam-se livremente nas ruas, nas mãos, nos olhos, na vida. O hoje é agora uma demência num corpo inerte e corrompido desprovido de língua e palavras, repleto de ausências: os espaços negros, os vácuos, os vazios. O amanhã, um pesadelo que se repete noite após noite, como um ceifeiro em época de colheita. O ontem, meu deus, o ontem, um Olimpo tão distante quanto a existência de um deus que ousamos substituir. Bem vindos à 3ª guerra mundial, a guerra onde somos escravos dos nossos próprios demónios interiores, onde já não vivemos sem pensar. Os mecanismos.

António tirou o dia para ele. Só ele. Mais ninguém. Longe do enleio das coisas que o rodeiam: longe dos mecanismos, do sofrimento, dos rendados sociais. Longe, António está longe, muito longe. Hoje o dia é dele, sem disfarces, sem acessórios, sem nada mais do que o seu olhar, o seu coração. António: o olhar, o coração. Veste o seu casaco de Inverno e ruma sem regras, sem obrigações. As ruas são amontoados de lixo, restos de uma revolta morta. Sem forças. As paredes das casas, dos prédios, passam mensagens de indignação, de rebelião: são mensagens mudas. Já ninguém as ouve. A rua está vazia. Continua a caminhar. Recorda-se da guerra. A guerra que levou tudo. A guerra que lavrou o mundo. A guerra que incendiou os corações das pessoas: já nada as espera. Do outro lado da rua, a Sr.ª Isabel caminha de olhar tombado. A pele cinzenta, sem cor. As correntes que lhe agarram o corpo a um amontoado de memórias usadas, a desejos famintos, a pequenos demónios que lhe vão devorando a vida, demorando-a. Vai movendo a cabeça de lado para lado, em ritmos desordenados. António fecha os olhos, e caminha, caminha para não ver mais. Para não cair na mesma demência. Para não sofrer da infecção. Caminha para longe, sem pensar. Abre os olhos. Pára. Á sua frente um vulto negro aproxima-se: o medo. Uma nuvem negra, com correntes que se arrastam no chão. Ouvem-se gritos do seu interior. Culpas. Uma dor multiplicada por outras mil. O medo observa-o. António observa o medo. Lembra-se da filha, que dorme em casa. A sua esperança. A sua vontade. O som ensurdecedor das vozes que exalam da nuvem negra. António caminha com a filha no olhar: a esperança: a vontade. O som das correntes que se afastam. António respira fundo o ar frio da manhã que vai terminando, respira um alívio, respira a filha. Respiram-se. Não receia. Sabe que os medos caminham pelas ruas em busca de hospedeiros. Mas António não receia a infecção. Ainda acredita. Ainda sente a vontade: Marília: a filha: a vontade: a esperança: a sua simbiose. E o medo tem medo da vontade, da esperança. O medo também tem medo. É em si, na sua essência, a sua própria tormenta.

António aproxima-se agora do que era uma praça magnanime. A praça da Vitória: é agora praça derrotada. Uma praça de escombros. Do seu centro, António olha em volta, reavivando as memórias: reconstrói. O teatro, a estação de comboios, o museu. Agora, nada. Apenas escombros. Memórias. Cinzas. Lembra-se quando ali ía com os pais, ao museu. O pai era pintor. A mãe, a sua musa. Juntos eram arte. Uma arte tão cheia de tudo. Sorri esses momentos. A guerra que os levou. Caminha para o que sobra do museu, para junto dos pais. Por entre as paredes tombadas, incompletas, vislumbra um quadro ainda preso ao betão. Observa-o. Perde-se na tinta que o preenche. António perde-se. Perde-se na tela. Na janela, na tela. La Condition Humaine de René Magritte. O mundo que vemos fora de nós mesmo, na nossa condição, nas nossas experiências. A limitação das coisas. O tempo que passa, sem o sentirmos na sua crueza, no seu momento. António perde-se. António respira fundo. Respira a vontade. Respira a esperança. António respira-se. Ele sabe. António sabe que ainda é tempo no tempo que se faz. A esperança.

[Obrigado a todos os Antónios do mundo, por me fazerem acreditar. Obrigado por me fazerem valer de um futuro capaz. Porque na verdade, na verdade, o futuro é o presente que se faz. Que na esperança haja essa vontade de mudar.]



sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

escrito XXV

Helena
[o bom de sonhar]

Ela sempre sonhou com a lua. Era um desejo forte de segunda-feira, dividir a lua em mil pedaços e reparti-los pelo mundo. Assim éramos brilhantes e sensíveis.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

escrito XXIV

carta para o meu neto, o teu filho Diogo

Pedro, escrevo-te para que me leias ao meu neto. Mas peço-te que me leias com entoação, com o teatro das coisas, para desculpar as minhas falhas na escrita, a minha falta de atenção. Bem sabes que não sou escritor. Preciso que me leias. Que me leias ao Diogo. Para que, num momento qualquer, ele me tenha. O meu querido Diogo me tenha. Tenho saudades, sabes? Saudades de te ver. Saudade de vos ver. Esventra-me tanto esta nossa maldição. Mas não te quero ocupar na minha tristeza. Desculpa-me. Lê-me.

Era uma vez, num mundo para além das estrelas, para além dos sonhos, para além de tudo o que se pode ver, um homem velho. Um homem muito velho que se esqueceu quem era. Vivia sozinho, entre os dias, entre os pensamentos: dentro dele mesmo. Reza a história, que num dia de Outono - era ele ainda novo - na vontade de se tornar o homem mais importante de todos os homens, se engoliu a ele próprio. E desde então, viveu só para si. Dentro dele. Porque se engoliu. Foi de facto o homem mais importante de todos, pois era só ele. Porque dentro dele, na sua vaidade, havia apenas espaço para ele e para mais ninguém. Acordava sozinho. Almoçava sozinho. Conversava sozinho. Jantava sozinho. Dormia sozinho. E assim se iam passando os dias, ele e a sua vaidade. Com o passar do tempo, ia-se esquecendo das coisas: das pessoas que amava, das memórias que trazia, do homem grandioso que outrora realmente fora. E foi ficando velho, ele e a vaidade. Juntos ficavam velhos. Sem histórias. Foram deixando de se falar. Juntos se apercebiam que eram reis de coisa alguma. Ora certo dia, entre todo o silêncio que o habitava, gritou. Gritou de tal maneira, que tudo dentro dele estremeceu. Dizem que foi nesse dia que acordou. Que saiu de dentro dele mesmo. Mas não tinha ninguém à sua volta. Era tudo tão árido como quando se tinha dentro dele. Um deserto. Não havia ninguém. Ninguém. Nem mesmo a vaidade do seu lado como antigamente. Então sentou-se, e ali ficou a chorar durante muitos dias, tantos dias que lentamente se foram formando rios das suas lágrimas. Rios da sua tristeza. Era um homem velho, sem ninguém. A sua tristeza que agora banhava o deserto. Porque um dia se engoliu. E agora, esqueceu-se quem era. Mas á medida que o tempo ia passando, também por ele passavam memórias distantes. Memórias perdidas. Memórias de quem fora. A sua família. A mulher. O seu filho. Lembrava-se. E o arrependimento habitava dentro dele. Era, agora, um homem velho arrependido. Saudoso dos seus. Trouxe-lhe o vento, que tinha um neto. Meu deus, um neto, dizia baixinho. E foi nesse dia que decidiu escrever uma carta. Escrever o seu arrependimento. Escrever a sua saudade. A sua vontade de mudar. A sua vontade de os abraçar. E escreveu. No fim, deu a carta ao vento para a entregar. E até hoje, o homem velho espera. Ele e o arrependimento. Ele e a saudade.

E assim, o homem velho, muito velho, aprendeu a sua lição: não há nada mais importante na vida do que as pessoas que nos amam. Que na vaidade de nós mesmo, não sobra coisa alguma.

Meu querido filho, perdoa-me.


[Pai, tenho pena do homem velho. Espero que o perdoem. O pai chora.]


quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

escrito XXIII

amo-te
[a forma como o sufoca e o abraça sem pedir licença]

Falo-vos de um amor. Não um amor qualquer: dos que se cansam, dos que se esvanecem, dos que se exaltam, só, quando nos sentimos sós. Um amor. Um amor de verdade. Um amor de uma vida. Um amor que vem para ficar. E fica. Bem guardado. E queima: para sempre. É desse amor que vos falo. Que de outra coisa não vos consigo falar. Porque preenche. Porque invade. Porque se exalta a qualquer hora. Porque me ocupa todo o espaço. Enfim, porque devora. E odeio por amar assim. Por não me amares dessa forma: porque se cansa. Porque se esvanece. Porque se exalta, só, quando sentes falta: de mim. Essa condição de te amar para sempre: essa doença. Amo-te. Amo-te para sempre. Amo-te com a intensidade de um sol. De dois. De três. De quatro. Mil. Amo-te, pronto. Amo-te para a eternidade. Acordar e sentir a falta do teu olhar: eu dentro do teu olhar: tu dentro do meu olhar: o nosso olhar. Por mais que gaste a palavra, ela nunca se gasta, por dentro. Amo-te. Amo-te. Amo-te. Amo-te. Amo-te. Amo-te. Amo-te. Amo-te muito. Amo-te tanto. Rasgo-me na repetição dessa penitência. Amo-te ao ponto de não haver maior grau de significação.


Meu deus. O que me restam são vultos, são vozes, silêncios disformes: são sonhos errados, nesta escrita de cordel. Porque me enrola. Porque me simplifica. Porque me torna tão básico. Sou um eterno escravo da tua ausência. Um tricô de coisa alguma.

Amo-te.