[ver parte primeira - escrito XI]
Quinta. O céu é toda uma mancha cinzenta. Chove. Gosto muito de chuva. Pouso os meus braços na janela e olho com alguma atenção o horizonte de cimento: as silhuetas dos prédios de Joanesburgo, no horizonte. Os aviões. As nuvens. Os carros. As pessoas. Olho com alguma atenção, mas não atento a nada. Não penso em nada. Acabei de acordar. Absorvo apenas o conforto da chuva que cai sobre a terra laranja-avermelhada, sobre a janela, sobre os meus olhos. Os riscos de luz que balançam entre a neblina. Chove muito. Os guarda-chuva de muitas cores. As bicicletas desordenadas, a fugir da chuva. Faz-me falta o rádio de Rifumo. Agora, as manhãs são surdas. Os autocarros, velhos na surdez da manhã. O elefante.
Hoje é o funeral do Rifumo: duas semanas depois. A família juntou todas as suas poupanças para lhe oferecer a melhor despedida possível. Dona Tithandianasi teve de abrir os cordões ao decote para convencer o doutor a aguentar o corpo do filho durante todo este tempo, na morgue. Ora o doutor não teve ar para recusar o pedido. Dona Tithandianasi amava muito o filho. Engano-me. Dona Tithandianasi ama muito o filho. Porque o carrega na totalidade do seu corpo. Na totalidade da sua tristeza. Agora caminha corcunda. E a tristeza é a falta da vontade. A tristeza embebeda-nos a vontade: Dona Tithandianasi perdeu a vontade. Dona Tithandianasi carrega o filho no corpo. Disse-me a propósito do funeral, ninguém pode esquecer o meu querido filho, ninguém. Haverá de tudo para que ninguém se esqueça. Tem de ser memorável, Zahra, memorável. E seguimos para Cantih, encomendar o caixão de Rifumo. Um caixão muito especial. Um elefante. Nada mais do que um elefante, nada menos que a força que o veste. Já tinha ouvido falar nestes caixões. Quando chegamos ao carpinteiro, havia lá de tudo: galinhas, baleias, leões, aviões, carros, entre outros por terminar. Mas Rifumo era um elefante: Rifumo: a força, a sabedoria: o elefante. Dona Tithandianasi deixou na mesa um saco muito gordo de notas, das poupanças: da família, dos amigos. O melhor funeral do quarteirão, Zahra. O melhor. Para Dona Tithandianasi, um funeral é muito importante, por demonstrar a força de uma família, o compromisso, a honra, o respeito. A memória.
Convidou todos os familiares, amigos, vizinhos, para presidirem o momento. Hoje é dia de festa no prédio. Vai haver muita comida, muita música, muitos risos, muitas lágrimas, muita dança. Da janela vejo o elefante chegar aos ombros de quatro homens. Seguram o peso de Rifumo. Seguram o peso que carrega uma mãe. Uma ausência. A muito mau jeito lá carregam o caixão pela escadaria, onze andares. Vão entoando as últimas palavras, as últimas palavras da tarde de quarta feira: a tarde que o roubou de nós. Liberdade. Liberdade. Na casa de Rifumo, preparam-se as coisas a preceito. As comidas, as bebidas, as flores, os discos. Hoje é o dia de Rifumo. A despedida.
Onze horas. O décimo primeiro andar está lotado. Grita-se muito. Dançamos. Contamos histórias. O rádio de Rifumo está na janela, como sempre esteve. Para nós. Para o prédio. Dançamos muito. Somos uma comunidade. Somos em parte o legado de Rifumo. Rifumo é uma parte de nós. Somos. Todos: somos um.
A tarde vai cobrindo o prédio. É hora de entregar Rifumo à terra. Ao lugar onde as coisas nascem, para que ele, ele também nasça, e se eleve. Tenho saudades tuas Rifumo. Das nossas conversas. Dos teus disparates. Da forma como me colocavas na ordem das coisas. Eras um irmão, sabias? O elefante pintado num cuidado quase impressionista. Rifumo, as manhãs terão o teu nome. A tua voz. A tua valência nas nossas vidas.
O elefante parte com a cara virada para casa, sobre os ombros de quem ainda se aguenta: para que se despeça. Despedimo-nos. Adeus Rifumo.
Quinta. O céu é toda uma mancha cinzenta. Chove. Gosto muito de chuva. Pouso os meus braços na janela e olho com alguma atenção o horizonte de cimento: as silhuetas dos prédios de Joanesburgo, no horizonte. Os aviões. As nuvens. Os carros. As pessoas. Olho com alguma atenção, mas não atento a nada. Não penso em nada. Acabei de acordar. Absorvo apenas o conforto da chuva que cai sobre a terra laranja-avermelhada, sobre a janela, sobre os meus olhos. Os riscos de luz que balançam entre a neblina. Chove muito. Os guarda-chuva de muitas cores. As bicicletas desordenadas, a fugir da chuva. Faz-me falta o rádio de Rifumo. Agora, as manhãs são surdas. Os autocarros, velhos na surdez da manhã. O elefante.
Hoje é o funeral do Rifumo: duas semanas depois. A família juntou todas as suas poupanças para lhe oferecer a melhor despedida possível. Dona Tithandianasi teve de abrir os cordões ao decote para convencer o doutor a aguentar o corpo do filho durante todo este tempo, na morgue. Ora o doutor não teve ar para recusar o pedido. Dona Tithandianasi amava muito o filho. Engano-me. Dona Tithandianasi ama muito o filho. Porque o carrega na totalidade do seu corpo. Na totalidade da sua tristeza. Agora caminha corcunda. E a tristeza é a falta da vontade. A tristeza embebeda-nos a vontade: Dona Tithandianasi perdeu a vontade. Dona Tithandianasi carrega o filho no corpo. Disse-me a propósito do funeral, ninguém pode esquecer o meu querido filho, ninguém. Haverá de tudo para que ninguém se esqueça. Tem de ser memorável, Zahra, memorável. E seguimos para Cantih, encomendar o caixão de Rifumo. Um caixão muito especial. Um elefante. Nada mais do que um elefante, nada menos que a força que o veste. Já tinha ouvido falar nestes caixões. Quando chegamos ao carpinteiro, havia lá de tudo: galinhas, baleias, leões, aviões, carros, entre outros por terminar. Mas Rifumo era um elefante: Rifumo: a força, a sabedoria: o elefante. Dona Tithandianasi deixou na mesa um saco muito gordo de notas, das poupanças: da família, dos amigos. O melhor funeral do quarteirão, Zahra. O melhor. Para Dona Tithandianasi, um funeral é muito importante, por demonstrar a força de uma família, o compromisso, a honra, o respeito. A memória.
Convidou todos os familiares, amigos, vizinhos, para presidirem o momento. Hoje é dia de festa no prédio. Vai haver muita comida, muita música, muitos risos, muitas lágrimas, muita dança. Da janela vejo o elefante chegar aos ombros de quatro homens. Seguram o peso de Rifumo. Seguram o peso que carrega uma mãe. Uma ausência. A muito mau jeito lá carregam o caixão pela escadaria, onze andares. Vão entoando as últimas palavras, as últimas palavras da tarde de quarta feira: a tarde que o roubou de nós. Liberdade. Liberdade. Na casa de Rifumo, preparam-se as coisas a preceito. As comidas, as bebidas, as flores, os discos. Hoje é o dia de Rifumo. A despedida.
Onze horas. O décimo primeiro andar está lotado. Grita-se muito. Dançamos. Contamos histórias. O rádio de Rifumo está na janela, como sempre esteve. Para nós. Para o prédio. Dançamos muito. Somos uma comunidade. Somos em parte o legado de Rifumo. Rifumo é uma parte de nós. Somos. Todos: somos um.
A tarde vai cobrindo o prédio. É hora de entregar Rifumo à terra. Ao lugar onde as coisas nascem, para que ele, ele também nasça, e se eleve. Tenho saudades tuas Rifumo. Das nossas conversas. Dos teus disparates. Da forma como me colocavas na ordem das coisas. Eras um irmão, sabias? O elefante pintado num cuidado quase impressionista. Rifumo, as manhãs terão o teu nome. A tua voz. A tua valência nas nossas vidas.
O elefante parte com a cara virada para casa, sobre os ombros de quem ainda se aguenta: para que se despeça. Despedimo-nos. Adeus Rifumo.