terça-feira, 30 de novembro de 2010

escrito XXII

o funeral
[ver parte primeira - escrito XI]

Quinta. O céu é toda uma mancha cinzenta. Chove. Gosto muito de chuva. Pouso os meus braços na janela e olho com alguma atenção o horizonte de cimento: as silhuetas dos prédios de Joanesburgo, no horizonte. Os aviões. As nuvens. Os carros. As pessoas. Olho com alguma atenção, mas não atento a nada. Não penso em nada. Acabei de acordar. Absorvo apenas o conforto da chuva que cai sobre a terra laranja-avermelhada, sobre a janela, sobre os meus olhos. Os riscos de luz que balançam entre a neblina. Chove muito. Os guarda-chuva de muitas cores. As bicicletas desordenadas, a fugir da chuva. Faz-me falta o rádio de Rifumo. Agora, as manhãs são surdas. Os autocarros, velhos na surdez da manhã. O elefante.

Hoje é o funeral do Rifumo: duas semanas depois. A família juntou todas as suas poupanças para lhe oferecer a melhor despedida possível. Dona Tithandianasi teve de abrir os cordões ao decote para convencer o doutor a aguentar o corpo do filho durante todo este tempo, na morgue. Ora o doutor não teve ar para recusar o pedido. Dona Tithandianasi amava muito o filho. Engano-me. Dona Tithandianasi ama muito o filho. Porque o carrega na totalidade do seu corpo. Na totalidade da sua tristeza. Agora caminha corcunda. E a tristeza é a falta da vontade. A tristeza embebeda-nos a vontade: Dona Tithandianasi perdeu a vontade. Dona Tithandianasi carrega o filho no corpo. Disse-me a propósito do funeral, ninguém pode esquecer o meu querido filho, ninguém. Haverá de tudo para que ninguém se esqueça. Tem de ser memorável, Zahra, memorável. E seguimos para Cantih, encomendar o caixão de Rifumo. Um caixão muito especial. Um elefante. Nada mais do que um elefante, nada menos que a força que o veste. Já tinha ouvido falar nestes caixões. Quando chegamos ao carpinteiro, havia lá de tudo: galinhas, baleias, leões, aviões, carros, entre outros por terminar. Mas Rifumo era um elefante: Rifumo: a força, a sabedoria: o elefante. Dona Tithandianasi deixou na mesa um saco muito gordo de notas, das poupanças: da família, dos amigos. O melhor funeral do quarteirão, Zahra. O melhor. Para Dona Tithandianasi, um funeral é muito importante, por demonstrar a força de uma família, o compromisso, a honra, o respeito. A memória.

Convidou todos os familiares, amigos, vizinhos, para presidirem o momento. Hoje é dia de festa no prédio. Vai haver muita comida, muita música, muitos risos, muitas lágrimas, muita dança. Da janela vejo o elefante chegar aos ombros de quatro homens. Seguram o peso de Rifumo. Seguram o peso que carrega uma mãe. Uma ausência. A muito mau jeito lá carregam o caixão pela escadaria, onze andares. Vão entoando as últimas palavras, as últimas palavras da tarde de quarta feira: a tarde que o roubou de nós. Liberdade. Liberdade. Na casa de Rifumo, preparam-se as coisas a preceito. As comidas, as bebidas, as flores, os discos. Hoje é o dia de Rifumo. A despedida.

Onze horas. O décimo primeiro andar está lotado. Grita-se muito. Dançamos. Contamos histórias. O rádio de Rifumo está na janela, como sempre esteve. Para nós. Para o prédio. Dançamos muito. Somos uma comunidade. Somos em parte o legado de Rifumo. Rifumo é uma parte de nós. Somos. Todos: somos um.

A tarde vai cobrindo o prédio. É hora de entregar Rifumo à terra. Ao lugar onde as coisas nascem, para que ele, ele também nasça, e se eleve. Tenho saudades tuas Rifumo. Das nossas conversas. Dos teus disparates. Da forma como me colocavas na ordem das coisas. Eras um irmão, sabias? O elefante pintado num cuidado quase impressionista. Rifumo, as manhãs terão o teu nome. A tua voz. A tua valência nas nossas vidas.

O elefante parte com a cara virada para casa, sobre os ombros de quem ainda se aguenta: para que se despeça. Despedimo-nos. Adeus Rifumo.


segunda-feira, 29 de novembro de 2010

escrito XXI

devaneio da fuga
[Parou para pensar. Mas desta vez, para pensar de facto. Nem sempre somos aquilo que imaginamos, “tão pouco mais ou menos”, aquilo que nos imaginam e imaginamos nos outros. Por cada dia que se põem, é aquela palavra dita por aquela pessoa, aquela expressão, aquele olhar, aquele abraço, aquela discussão, aquela amizade, aquele amor, aquele, aquela: não importa, mudamos sem notarmos. E continua a pensar. Odeio quando sou egoísta, odeio quando o aborreço, odeio sentir demais, odeio quando me odeio de manhã, odeio quando sou arrogante, odeio quando a aborreço, odeio quando me odeio de tarde, odeio quando não compreendo a incompreensão dos outros, odeio quando os aborreço, odeio quando me odeio de noite. Odeio-me. Sinto uma certa pena por esta disformidade pessoal]

Fim de tarde. O relógio grita o atraso de uma vida escondida na ilusão. A tarde que se escorre nos olhos. A roupa dobrada na mala por fechar: a indecisão. Fita, mais uma vez, a janela: o pôr-do-sol no amarelo cansado do prédio vizinho. A mala fechada: a partida: a decisão. Na mesa, o bilhete de comboio. Despede-se do quarto, das paredes que guardam as palavras mudas da frustração de uma vida mentida. A mala na mão. O bilhete de comboio no bolso das calças. A decisão no coração. Vou mudar, vou mudar. A porta bate. Dá três voltas na fechadura mesmo sabendo que não volta. Não. Nunca. Nunca mais. Espera o autocarro. A adrenalina de se ver fora de si. Entra no autocarro. Não pensa em nada. É tudo muito confuso. Sai do autocarro: Avenida dos Aliados. A noite enche-se de sombras. Sente a noite escorrer-se nos olhos, trémulos. Abraça a baixa, a calçada, as pessoas cinzentas, os edifícios cinzentos, a praça cinzenta, as pombas, as mulheres que vendem meias de lycra, o senhor do acordeão, o outro senhor das lotarias, as crianças que mergulham no douro, os pedintes, os jardins do palácio, acena com a alma o adeus. A estação de comboio. Desperta: - o comboio do cais cinco, com destino a Fuga, parte dentro de cinco minutos. Caminha para a porta, pensa, se conseguir fumar um cigarro e o comboio ainda não tiver partido é porque estou a tomar a melhor decisão. Ri-se. Fuma um cigarro, enquanto se despede da estação de S. Bento, enquanto se desculpa. O comboio vai partir. Entra. Ás vezes é tão mais fácil fugir.


domingo, 28 de novembro de 2010

escrito XX

devaneios
[Se por algum motivo a pele se rasgar, fujo-me. Escoo-me.]


Love, let me sleep tonight on your couch

É tão fácil esconder tudo. Sou vazio por dentro. Arranjar um espacinho e atirar tudo o que não queremos mostrar. Sou vazio por fora. Não me tenho fora de mim. Tenho-me dentro, não me tendo realmente, porque escondo. E é tão fácil ser aquilo que não somos, que se torna um vício: Prisão. Iludo-me.

Não é fácil. É custoso. Difícil. Penoso. Doloroso. Espinhoso. Molesto à realidade do mundo: aquela que me envolve e me diz, em vozes sibilantes: não o olhes com o coração, é profano. Tremo por pensar-te, assim, tão de perto. Profano, dizem-me. É espinhoso. Não é fácil. É tudo tão impossível. Não existe esperança para isto. Pois não? A lucidez é carrasco. Os ensaios são venenos, lentos. Se ao menos tu, se, ou então se. Se, é ilusão para estas coisas. Quero-te, aqui, bem junto de mim. É veneno. É profano, sibilam. Não é fácil. O teu olhar que me agarra. O teu sorriso. A tua voz. Um desequilíbrio meu. Certamente. Mas sinto. E não há mal nisso. Não o olhes com o coração, é profano. Não é fácil.

And I couldn't awake from the nightmare that sucked me in and pulled me under I love you, but i'm afraid to love you

Fim. Não posso continuar. Este silêncio que me rasga por dentro, quando te olho, no teu olhar: quando me olhas: eu dentro do teu silêncio. É um deserto imenso, esse, antes do amor. Eu dentro do teu olhar, verde. O meu olhar que abraça o teu, e se dilui no teu, e se abre no teu, e se perde no teu. Um deserto. O teu silêncio que me abraça, na indiferença.

O silêncio dói. O teu olhar no meu: dói: os nossos olhares: o silêncio. E é tão pouco, tudo isto. Não posso continuar. A aridez do solo, quando sonho, da linguagem do teu corpo, quando te falo. Não posso continuar, amor. Sinto o cheiro trágico de tudo isto.

A ilusão abraça quem se deixa ficar no cru do dia de olhos fechados; os sonhos: predadores. E somos presa fácil. Sophia lunar ardeu. Ardi. Ardemos. Não olhem para mim, porque eu sou negra, porque o sol olhou para mim. As profundezas tenebrosas cobriram-me o rosto e a terra está corrompida e maculada nas minhas obras, e as trevas abateram-se sobre ela, assim como eu estou atolada no lodo dos abismos e a minha substância não foi aberta. Ilusão. Cinzas. O fogo é a realidade que me queima.

Vivo na total deformação do homem que um dia aspirei não ser.

Escondo.



sábado, 27 de novembro de 2010

escrito XIX

faltas-me

Sento-me todos dias no banco onde te sentavas
Por baixo da árvore do jardim ...
O vento dança como sempre dançou,
As folhas caem como sempre caíram;
O sol abraça-me como sempre abraçou,

A chuva beija-me como sempre beijou;

As sombras cobrem-me como sempre o fizeram,

O teu mundo abarca-me como nunca me abarcou!

A tua alma falta-me como nunca faltou;

Agora só o deambular ébrio deste olhar
Em movimentos excêntricos,
Me aprisiona neste banco de madeira;

Esse espírito promulgador da escuridão

Que vagueia por orbes da penumbra

E que ainda hoje me sustenta a dor,

Me arrefece a alma,

Me intoxica com substancias pútridas ...

Tudo neste banco onde sempre te sentavas

Por baixo da árvore do jardim ...
Estou eu e esta dolorosa saudade!



sexta-feira, 26 de novembro de 2010

escrito XVIII

Judite Tola
[na esfera das coisas que se mutam, fica a essência]


Judite é a leveza. Na aldeia era conhecida como Judite Tola. Dizem que a parteira a deixou cair quando nasceu, ao que Filomena jura, pela alma da minha mãezinha, não ter cometido tal distracção. Judite é a inocência. Órfã de pais, diz o senhor Joaquim, órfã de pais e cabecinha, lá vai vivendo com a tia Teresa, que lhe ficou de encargo quando a irmã lhe faleceu. Judite é a simplicidade das coisas. Judite Tola encarrega-se de todas as tarefas em casa. Judite Varre. Judite lava. Judite limpa. Judite cozinha. Judite semeia. Judite colhe. Judite dá de comer aos animais. Judite. Judite. Judite. Ao contrário do que todos imaginam e comentam, Judite não é a gata borralheira: porque sorri. Porque vive num tempo diferente de todos os outros. Porque não quer ser mais além de quem é, hoje. Porque é feliz. Porque é tonta. Ao primeiro rasgo de luz da manhã, levanta-se e vai dar de comer aos animais. Começa pelas galinhas, depois pelo porco, conversa com o burro e termina com a vaca Arlinda. E sorri. Assim terminada a tarefa, apressa-se à padaria do Berto para comprar pão para o pequeno almoço da tia. Veste uma saia muito mal tratada de um tom violeta, uma camisola de um amarelo já devorado pelo tempo, e umas sandálias que já mais parecem uns chinelos. Que já não se prendem a nada. Descabelada, pega na sua bicicleta amarela, e pedala enquanto entoa uma música que nunca ouviu. Uma música que lhe surge. Judite é a música. Judite Tola não fala, apenas se exterioriza em expressões: em olhares, em sorrisos, em gestos, em vontades. O sino pregado à porta badala, e Berto sabe que são quatro pães. Judite Tola é sempre a primeira a entrar na padaria. O Berto sabe que são quatro pães. Judite sorri com o seu olhar amêndoa e tão cheio de tudo o que a rodeia, enquanto pousa alguns tostões na banca. O dia nos olhos. Bom dia Judite. Manda os meus cumprimentos à tua tia. Judite acena-lhe com um sim e, ainda mais descabelada da viagem, faz o sino badalar uma vez mais. Monta a bicicleta rumo a casa, rumo ao pequeno almoço, rumo às tarefas que lhe faltam, rumo à tia. Judite é o dia. Berto sorri de soslaio. Na aldeia toda a gente gosta de Judite. Guardam-lhe um sentimento de compaixão, pela perda. Judite é a aldeia. O seu cabelo comprido, descabelado, esvoaça. O pão na cesta da bicicleta. As sandálias que já não se prendem, que são chinelos. O caminho em terra. Judite entoa uma música. Cruza-se pelas meninas da grande casa. A casa dos Kayser. A casa da luxurias. Lá vai a pobre coitada. Olha para ela, toda descabelada. Riem-se. O buraco no caminho de terra. Judite cai. As meninas Kayser riem-se muito. soltam gargalhadas insufladas em troça. Silêncio. Judite pousa a mão no joelho, que lhe arde. A bicicleta no chão. O pão espalhado pela terra. O pequeno almoço da tia. As meninas estendem-lhe a mão. Judite Tola estende a mão para se levantar. As meninas Kayser voltam a rir-se muito. Achas que te tocamos descabelada? Ainda apanhamos bichos! Riem-se tanto. Viram costas em direcção ao seu caminho. Judite descabelada, Judite destrambelhada. Judite descabelada, Judite destrambelhada. Judite descabelada, Judite destrambelhada. Cantam, enquanto se afastam. Judite é o silêncio. Levanta-se, agarra na bicicleta, no pão. Caminha para casa. Judite não entoa uma música. Judite não segura o dia nos olhos. Judite vai pesada. O tempo são meses nos dois minutos que a separam do destino. Tomba a bicicleta no jardim. Limpa o pão. A saia violeta, rasgada. A camisola que já não era amarela, enlameada. Barra o pão em compota, muita compota, para disfarçar o sabor a terra. O chã que ferve. Bom dia minha querida. A tia senta-se à mesa. Judite pousa o pequeno almoço. Não sorri. Não olha a tia. Sai imediatamente da cozinha para dar de beber ao burro. Para fugir da vergonha que a embebeda, da raiva que a embebeda, da tristeza que a embebeda. São tudo coisas novas para Judite. São tudo sensações que a embebedam, e a destroem, por dentro. Atira o balde para o poço, para o encher, para dar de beber ao burro. O seu reflexo na água. O reflexo de uma face suja em lama. Judite vê-se descabelada. Uma lágrima que se funde na água. É agora água salgada. Judite. O reflexo de Judite Tola. A inocência que se vaza. Perde-se no seu olhar. Judite não dá de beber ao burro. Corre. Corre muito. Judite corre tanto. Judite corre uma fúria que lhe carbura o corpo. O caminho de terra. A inocência que fica para trás, no balde, na água, no reflexo. Judite Tola corre muito. Respira ofegantemente. Não entoa uma música. As sandálias que se soltam dos pés, que ficam para trás. Os pés na terra enlameada. A raiva. Judite é a raiva. A fúria. Judite é a fúria. No horizonte as meninas Kayser. Nos olhos de Judite as meninas Kayser, perdidas entre uma mão cheia de sensações que Judite Tola desconhecia. Judite aproxima-se das meninas. Grita. Grita muito. Judite Tola grita numa voz que nunca ninguém lhe ouviu. Judite grita tanto. Atira-se para cima das meninas. Berra. Grita. Berram. Gritam. As mãos de Judite nos cabelos das meninas. Os cabelos são, agora, descabelados. São agora cabelos descabelados. O das meninas, o de Judite. O Berto apressa-se a separa-las. As mãos de Judite não largam os cabelos das meninas, que berram, que choram. Judite ri-se. Judite ri-se muito. Judite Tola ri-se tanto. A fúria que lhe tolda o pensamento. A raiva que lhe bombeia o sangue, nas veias. Pela primeira vez, Judite fala: Descabeladas. Descabeladas. Descabeladas. Grita, Descabeladas. Descabeladas. Descabeladas. A cara de espanto de Berto. A voz de Judite. As caras de espanto das meninas descabeladas. Berto ri-se. Berto ri-se muito. Berto ri-se tanto. As meninas no chão, descabeladas. As faces molhadas em lama, em lágrimas. Judite aproxima-se das meninas. Estende-lhes a mão. Levanta-as. Judite Sorri. Judite olha-as nos olhos. Limpa-lhes a cara. As meninas envergonhadas. Vira costas e volta para casa, entoando uma música, uma inocência que se devolve. Judite, grita uma das meninas, queres vir brincar connosco? Judite sorri. Judite sorri muito. Judite sorri tanto. Acena que sim. Judite Tola sorri.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

escrito XVII

o despertar
[tanta a tristeza, inerte e voraz. tão sentida: molesta tristeza. e o tempo que não olha para trás, não me devolve o que ficou: - devolve-me a vontade para não viver na saudade. leva-me o tempo.]


28 de Dezembro. Quando acordei pela primeira vez, dias antes de fazer dez anos, apercebi-me. E que miséria. O despertar de um primeiro sono. Foi por essa altura que o quotidiano deixou de ser tão embriagado, imperceptível. A inocência rainha, fez-me bastardo. Abraçou-me a lucidez. Lembro das últimas palavras, das últimas imagens. A minha irmã penteava-lhe o cabelo, sorria, não desconfiava. Ele sorria. Sorria-lhe. Sorriam. A minha mãe olhava para nós, sobre a escuridão do pequeno quarto onde vivíamos. Não sei em que pensava. Doía-me o coração pensa-la sofrer, e talvez por isso a imaginasse ali apenas para nós, forte, que sofria mas suportaria a nossa dor no que se adivinhava. O meu pai morreu nessa manhã de inverno. O pai adormeceu, dizia Madalena enquanto lhe acarinhava o cabelo. Corri para a minha mãe. Chorei o dia todo. Madalena não compreendia. Chorava também por me ver chorar. Tinha seis anos. A minha mãe não chorava. Os seus braços, magros, agarravam-nos, envolviam-nos numa força que não tinham. Com a cabeça pousada sobre a minha, olhava para o vazio. Era um olhar pesado, um olhar tão cheio de tudo: o passado, o presente, o futuro. Um olhar que tremia, porque os fortes também tremem, também temem, também questionam. O pai adormeceu. Cuida da tua irmã e da tua mãe. As palavras cortavam todas as coisas em que acreditava. As coisas fáceis, simples, fantasiosas: os pequenos impérios sobre o meu domínio feudal nas terras da escuridão por debaixo da minha cama, os cavaleiros negros que habitavam o armário, a bruxa má de cabelos ruivos chamada Madalena a irmã, a intemporalidade. O pai adormeceu. As suas memórias enchiam-nos o peito, mas não respirávamos. Madalena sorria uma inocência tão bela, tão cristalina. Eu chorava. Não tardou a Madalena chorar também. A mãe não sorria. A mãe não chorava. Foi a primeira vez que vi alguém morrer: o meu pai: a minha mãe: a minha irmã: eu. Cada um de nós morreu um pouco naquela manhã cinza de Dezembro. Acordei quando o meu pai adormeceu. Desde então, tudo se complicou. O quarto, que era pequeno, tornara-se numa grande despesa para a minha mãe. Na realidade não era bem um quarto, mas sim um sótão alugado por alguns tostões na Rua das Flores. Ironicamente, as flores já não eram suficientes para as despesas. A minha mãe era florista, mas não uma florista qualquer como as que víamos à porta do cemitério, ou no mercado. Cada arranjo contava uma história, cada flor um segredo em verso, cada pétala uma palavra, cada essência uma epopeia magna das coisas que não ousamos dar nome. Mas as flores já não eram suficientes. Assim como o ar já não era suficiente. As lágrimas. As sensações. Os gestos. As palavras. Já nada era suficiente. Morremos naquela manhã para acordarmos.

Desde cedo comecei a compreender o poder, a importância, a dependência, a força que uma pessoa pode ter sobre outra. O quão fácil é para duas pessoas se destruírem, mesmo sem o desejarem ou consentirem. Era tudo um jogo de dependências, como se as relações pudessem exercer uma força gravítica nos intervenientes, que se quebrada ou modificada, pudesse alterar ou influir na movimentação, no equilíbrio dos corpos, atingindo-lhes o núcleo: o estado de espírito, de consciência na imensidão de um universo composto pelas ausências: propulsores de actividade. Seriam portanto as relações puras reacções físico-químicas, como os astros. O meu pai era uma estrela a centenas de anos luz, morta. No entanto, para nós, dentro de nós, ainda existia. A luz dele ainda nos atingia o peito, numa angústia, numa beleza estranha de o termos. Uma luz tão cheia de vazios, que projectava o passado. O meu pai era uma estrela morta como todas as outras que víamos no céu. O passado que envolve o presente: o céu: o meu pai.

Não passou muito tempo até sairmos do prédio gasto e esguio, das ruas cinzentas e frias, dos pequenos sítios, dos pequenos momentos. A loja da mãe fechou. Dia 2 de Janeiro. Sábado. Partimos. A mãe trancou a porta. Lembro-me de a ver nervosa, acelerada, nessa última manhã que víamos nascer, que víamos morrer, no Porto. Cada frase que dizia, imediatamente a repetia em tom baixo, como se falasse para nós e depois para ela mesma numa demanda por um conforto que não tinha, uma voz que lhe faltava: o pai. Vamos lá, vamos lá para a estação. Já nada nos espera aqui. Nada nos espera. Vamos lá. Eu segurava um ramo muito bonito feito por ela, para dar à minha avó na chegada. Como a estação de comboio ficava mesmo ao lado de casa, ainda tivemos tempo de comer uns torrões oferecidos pela D.ª Lucinda que os vendia junto da bilheteira. Lá nos esperava, envergando o seu habitual vestido vermelho às pintas brancas, que lhe cobria o corpo inchado. Ela e a mãe trocaram um longo olhar em silêncio, um silêncio cheio de palavras que custavam, que queimavam. Abraçou-a. Vocês venham-me visitar suas pestes. Beijou-nos aos dois. Beijou a minha mãe. Á socapa deixou-lhe um saquinho com notas no bolso do casaco de ganga. Adeus minha querida. Vem visitar-me. Vamos todos ter muitas saudades. Já sabes que as portas de minha casa estão sempre abertas. A minha mãe sorriu, sem sorrir de verdade. O rosto chorava, mas não lhe via lágrimas. Agora sei que chorava por dentro. Que o corpo era um oceano de memórias onde se afogava, onde lutava para manter a cabeça firme, fora de água, para respirar, para sobreviver. Às 9:15 chegava o nosso comboio. Finalmente ouvia-se a voz da menina da bilheteira ecoar na estação: o comboio preparava-se para partir. A Madalena saltava de alegria. Lembro-me tão bem. Carregava uma mochila cor de rosa nas costas com alguma roupa e as suas duas bonecas favoritas: Anita e Joana, as suas boas amigas de chá. Anda mano. Corre, que já nada nos espera aqui, vamos lá. Para Madalena era tudo tão perfeito, tão entusiasmante. Receava que perguntasse pelo pai. Já era habitual o pai não ir connosco visitar a avó, por isso não estranhava; mas agora o nunca pareceu-me tempo a mais. A D.ª Lucinda chorava. Adeus meus queridos. Foram as últimas palavras que ouvi na partida. As últimas palavras que ouvi da amiga da mãe. A Lucinda dos torrões, era assim que a chamavam na rua. Era o nome de guerra. Foi a última vez que vi a Lucinda dos torrões. Adeus Lucinda.

[para continuar]


quarta-feira, 24 de novembro de 2010

escrito XVI

limbo. surrealismos
[serve-me pouco, hoje, a imaginação. ainda assim, mantenho o desafio]


Existem momentos na vida, essas pequenas telas do olhar, onde nos pintamos na periferia de um foco visual, presos numa moldura que nos sufoca, deslocados em ambientes controlados, porosos, num espaço, num tempo. Pedro era o risco que não era contorno, a cor que não era forma, o traço que não era composição: Pedro não era. Como as mãos, os dias envelheciam com ele, ganhavam o calo de uma vida: o suor das rotinas. Morriam juntos. Acordava com o raiar do dia, no campo, na terra. O dia era a lavoura.


A manhã é intensa, quente. O arado embateu contra algo submerso na terra. O arado não se move, quebra a rotina. Pedro empurra, grita ao animal que o puxe. O arado não se move, o burro não se move, a terra não se move.


Pedro já foi casado. Aconteceu tudo muito rápido. Pedro já teve filhos. A vida foi um segundo. A manhã começava na mesa, em família. Tudo o que tem início, conhece um fim. O café com leite, o pão, os sorrisos de um dia que começava todas as manhãs na mesa de madeira da avó. As manhãs também têm um fim. Tudo fazia sentido, haviam propósitos, vontades servidas pelo amor.

Mergulha as mãos na terra. O calor nas costas, gastas, velhas, suadas: o corpo também chora. O burro deita-se na terra, descansa. O arado não se move. Pedro cava. As mãos são calejadas. O corpo debruçado em esforço, chora.

No final da estação, dois terços do cultivo eram entregues ao dono da propriedade. O sacrifício da lavoura era obrigatório, trazia um telhado, um prato na mesa. Foi a terra dos pais, dos avós. Com a peste negra, já não havia dinheiro guardado por debaixo do soalho do quarto dos pais, haviam apenas papeis, dívidas. Da noite para o dia, todo o esforço de uma geração conheceu novo proprietário. Conheceu uma corrida contra o tempo, contra a tirania de um soberano. Aconteceu tudo muito rápido.


Pedro levanta-se. Soltam-se rios dos olhos. A água percorre a face pálida, cai na terra. Da terra nascem memórias a preto e branco, semitransparentes. Têm raízes. À sua volta uma floresta de memórias, agarradas ao chão. Os pais, os avós. Crescem no sal das lágrimas. Do buraco cavado, brotam os filhos, a mulher. Têm buracos no peito, na cabeça. Os braços são ramos que o agarram, que o arranham: têm espinhos. O sangue na terra. Crescem três homens do vermelho turvo. Pedro chora. Crescem com raízes que o prendem ao chão. Olha à sua volta. O burro é agora cavalo, montado pelo soberano, que sorri. O soberano sorri. Os três homens disparam contra Pedro. Abrem-se buracos na carne. Os braços da família, as raízes. Pedro resiste. As raízes que o puxam para a terra. Pedro vê a família no buraco, morta. Pedro vê-se, morto. Foi tudo tão rápido. O arado não se move. Por debaixo da terra, Pedro, a mulher, os filhos, não se movem.

A época não foi produtiva. Não tinham cultivo suficiente para pagar ao senhor da terra. A mulher chorava. Os filhos não compreendiam. Pedro, lá fora, sangrava das mãos, puxava ele o arado. Não parava. No pensamento o amor pela família. Pedro sangrava o inevitável. Foi tudo tão rápido.

O arado não se move. Na terra cavada, jaz Pedro e a família. Pedro encontrou-se.


terça-feira, 23 de novembro de 2010

escrito XV

carta para dentro

Hoje é tarde. Abro a janela do quarto: análogo à vontade de me abrir ao mundo. Não me conheço fora de mim: abro-me para dentro. Exteriorizo-me para dentro. Sempre para dentro. Não existo por fora, para fora. Dói, na intensidade da forma. A janela aberta. A tarde que cai sobre as minhas costas, que se estende na arcada do corpo, na pele. Estendemo-nos. Somos: um. Sinto-a. A tarde dentro de mim. O imediato das sensações que expira, que eu inspiro. Um. A tarde que se faz dentro de mim, no quotidiano da paisagem: os prédios, as vozes, as sirenes, o ruído áspero do asfalto, o mar: na melancolia da luz que termina, dentro de mim, quando inspiro: a tarde. A melancolia das coisas que terminam. E é tarde, na tarde. E é tão tarde para nós. A tarde tem-me dentro dela. E somos as coisas simples. E não pensamos nos simbolismos das coisas. Respiramos. E temo-nos dentro de cada um. E não perguntamos coisas, não. Respiramo-nos. Ardemos no calor do sol que se põem. Somos um. E é tarde na tarde que se faz noite. E sou tanto por dentro e tão pouco sou no final. Amanhã morri. Entrentanto, vou morrendo em ti.

devolve-me a vontade. devolve-me à vontade.


[
...O menino, por fim, tombou cansado | O seu boneco aí jaz esfarelado... José Régio]



segunda-feira, 22 de novembro de 2010

escrito XIV

impossibilidade
[O desejo e o silêncio do desejo podem ser fatais: um organismo vivo que se vai alimentado aos poucos e poucos, por dentro: diagnóstico do paciente que vê as coisas na razão dos outros…]

Ele apaixonou-se. Ainda não sabe, senão uma sensação na barriga quando cruza o olhar, quando se prende no olhar, quando se vê no olhar e se prende uma outra vez no olhar e deseja: e são tantas as coisas que se dizem num olhar, quando se prendem. Um vulto negro: a razão, e não bate à porta. Não tem rosto. A porta aberta: entra no quarto e bafeja um silêncio sufocante e quente que o agarra, e o abre, e lhe rouba tudo o que não lhe obedece: a razão é ladra de desejos. O corpo dele aberto. Chora. O silêncio que o invade e lhe fecha a laceração. O silêncio alojado no corpo dele. Sente-se vazio.
Não existe um “nós”, nunca poderá existir. A existência parte de um princípio de criação: a razão: nada foi criado, apenas, ilusão. Ele deseja.

domingo, 21 de novembro de 2010

escrito XIII

homem ninguém
[a vida procuro-a nos que me fazem, por ser também, um pouco neles. somos.]


Homem, ninguém te vê inteiro, pelo que és, pelo que crês. Um homem incerto, diz quem julga que te vê, quem não te soube valer. Em gestos estudados, os olhos: verdes, frios, gelados, negados; e olham-te, tocam-te e amassam-te, e tu sem nada a dizer. Apenas na mão, só, doce negação do prazer dos outros. Doce por ser, oportunidade de ter também, ódio: dor e ódio da dor, em dor, em ódio: em ti - para chorares com algo na mão e dizeres, eu tenho isto em mim. Eu tenho isto em mim! Gritar, eu vou morrer por ter, vontade em mim! E te evadires de ti. E não te lembrares de ti. Apenas o amargo da dor, doce por não te veres... fácil para viver: comprimido das horas vagas. E esse ódio a quem o vais servir? Bem no fundo, de nada te vai valer.
Desistes. Gritas, amanhã morri, a voz dessa doença, o teu doce desistir: por te teres em todos, sem te teres em ti. Grita, grita, grita essa voz que se prende, essa palavra que se amarra, e acorda a vontade, e expulsa a tontura que te vai na alma.
Homem, ninguém nos vê dentro de nós.



desenha-se a palavra nos lábios,
expressão imediata da reacção, palavra,
afiguração da imagem, do secreto:
o que está para além da fala, pensamento bruto,
segredo que percorre o cérebro, segredo
que se revela, que existe
por haver também, outro alguém, outra palavra,
um Gil Eanes que além cabo Bojador,
vê mundos a descoberto, vê
em mãos de descobridor, palavras de alguém
que se revela...
palavras de alguém que se revela.

[ escrevo-te: escrevo-nos.]

sábado, 20 de novembro de 2010

escrito XII

rota da dor
[e quem nunca naufragou?]

I

Tempestades salgadas
Nas ondulações da lágrima. Os trovões,
Soares irados do pensamento,
Rebentações do coração em precipitação. A chuva,
Condensação do sentimento, fluido etéreo. Ciclones,
Depressão das palavras, expiral da dor,
Rodopios incessantes da alma.
Descargas eléctricas no corpo.
Sentença final do sorriso,
Desinência do olhar no horizonte,
Carregado, negro
Em constante turvação do olhar salgado,
Inconstante na tempestade.

Som continuado do farol,
Luz artificial, sempre artificial, bailante,
Dançarina tonta que noticia
Os recifes laminados. Coração,
Navegador sem bússola
Carregado nos braços do vento, embalado
Ao colo do mar salgado, perdido,
Capitão sem tripulantes, só
Laceração sentimental, sina da tempestade.

Choros bravios, correntes em remoinho,
Alma sem leme,
Palavras ancoradas,
Rezas sem destino, presas,
No fundo do mar.

Naufrágio.

II

Dor gritada na caravela dos sentidos
Em naufrágio, em coração partido
Nos recifes da realidade:
Lâminas do sonho.

Espuma salgada na rebentação da lágrima.
Corpo inerte ensanguentado,
Corpo à deriva,
Corpo em mar salgado.

Dor sem norte,
Consciente afogado,
Delírios no quase-morte
Do coração que sofre, coração perfurado, coração
De quem não é amado, ouvido,
Lembrado, sonhado,
Querido, chamado,
Sentido, e tudo é,
Dor.

Ao longe a ilha.

III

Água negra, do negro de mim,
Sentimentos de maré forte, tempestuosa,
Dor náufraga, tempestuosa.
E o corpo enrolado na maré,
E o corpo levado na maré,
E o corpo, só corpo, longe de mim,
Longe de mim,
Longe...
Na ilha

Em mim

Em ilha de ser o que não sou,
Capitão de braços fortes, capitão de
Leme na mão, voz de trovão,
Forte, senhor dos sete mares,
Sem coração, pirata,
Ladrão, almas na mão,
Mas não...

Olho-me e sou, só
Em ilha de mim, só
Dor.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

escrito XI

o prédio
[Arredores de Joanesburgo, África do Sul, ano de 2009]


Quarta-feira. Este prédio deixou de ter dono. Peyisai foi morto pelo "Ditador". É uma prática comum nesta zona. Matam o proprietário e tomam o edifício como refém. E somos todos reféns. "O Ditador", nome que lhe veste tão bem a tirania e a frieza por que é conhecido, é o novo proprietário do prédio, das nossas rendas, das nossas vidas. Ostenta os luxos de um tirano que se preocupa não mais do que ele próprio. Vivo num prédio sequestrado que morre à passagem do tempo.

Da minha janela vejo o sol amarrar-se ao horizonte. A brisa quente acaricia-me a face, abraça-me o corpo. No rádio de Rifumo, o vizinho de cima, ouve-se Miriam Makeba. A voz dela ecoa pelos quinze andares do prédio. Khawuleza mama, Khawuleza. Infiltra-se nas fendas. As paredes inclinadas e velhas ganham cor, rejuvenescem. A voz quente de Miriam. Rejuvenescemos. E carrega-nos no seu regaço: enche-nos o coração. E liberta-nos. Ainda hoje, tantos anos depois, para nos libertar. Lá fora as velhas dançam com os pequenos. Apresso-me a descer os dez lanços de escadas que nos separam, para me juntar, sentir essa liberdade, perder-me: esquecer-me: libertar-me. Vou tropeçando no lixo que ao longo do tempo se foi acumulando nas escadas. Já ninguém se interessa. Pelo caminho encontro Boseda. Sorrio-lhe. Sorrimos. Khawuleza mama, Khawuleza. Cantamos e corremos agora os dois entre risos que nos fogem na exaltação do momento. Já no quarto andar, bato à porta da minha amiga Malenga. Continuamos a correr. Malenga corre connosco. As suas imensas tranças negras são vinte mil cavalos que relincham o momento que se faz. Corremos. Eu, Boseda e Malenga. Khawuleza mama, Khawuleza. Cá fora juntamo-nos ao imenso grupo de vizinhos que dançam, que cantam, que partilham um entreacto longe da dureza que nos preenche. Rejuvenescemos. Somos uma imensidão de sensações. Somos unos. Somos tão longe de nós mesmos. Somos puros. Rifumo, no décimo primeiro andar, grita Liberdade! Irmãos, Liberdade. Este prédio é nosso. É preciso tomar medidas irmãos. Liberdade. Gritamos, Liberdade. Khawuleza mama, Khawuleza. A música termina e com ela a exaltação. Voltamos para casa, e levamos a liberdade no pensamento. A nossa vida raptada. A liberdade que se contorce. Um pensamento de ruptura, de revolução. Todos levam em segredo uma vontade incontrolável, quase irascível de mudança. Uma voz muda que se contrai no sufoco da fala. Todos levamos o segredo para casa.

O rádio de Rifumo não toca. Quinta-feira. Malenga entra no meu quarto e conta-me da notícia. Não se dança no pátio. As paredes são velhas e inclinadas. O prédio é cinzento. Rifumo foi encontrado morto na rua. Um tiro na cabeça e outro no peito. O nosso Rifumo. Não choramos. Já não conseguimos chorar. Perdemo-nos nos nossos olhares. Perdemo-nos no avesso de nós mesmas. A indolência que nos amarra. O meu nome é Zahra e vivo num prédio sequestrado que morre à passagem do tempo.


quinta-feira, 18 de novembro de 2010

escrito X

razão

Lavo-me no vento a cada manhã, uivo em rodopio pensamentos verticais ociosos desta vontade carnívora de ser sem pensar. Tenho a razão nas veias, essa rectidão lógica que se espreguiça no corpo e que me turva o coração: mandíbulas da mente que desejam por vontades mecânicas, em sistemas fabris, poluentes da vista, poluentes em mim. Maquinismo.

Ó vento, se tudo isto não é distracção.

Leva-me vento à tua essência solta das correias e cadeados, liberta, pura por seres sem a vontade dos outros, apenas: vento. Leva-me, leva-me, carrega-me no teu colo ao mundo dos naturalismos, onde se pode ser sem querer, sem pensar. Lava-me, lava-me dos mecanismos. Lava-me, lava-me, e leva-me e deixa-me só a alma.



Tenho me sentido, e só sinto
A incerteza de um qualquer sentimento meu.
Quando me posto à janela da alma, e olho
Miragens do tempo, que não cessa,
Demarcar o compasso caótico, alienado,
Da minha desarrumação interior, choro.
Tenho me sentido e sinto-me só.
Tenho-me em noite negra sem luar,
Choro. Choro em constrangimento da incerteza,
Contracção de tudo o que vai em mim,
Expansão inevitável da dor,
Ludibriar da mente, nunca ausente:

Mão de ferro que bate na mesa
Aquilo que é da razão, sem alusão,
Sem sentimento, só equação de mim,
Geometrias da dor.

Choro o oriente ausente, meu
Olhar de frente sem ver com intuição, pessoas
De um cinzento, gente sem sentimento,
Mirar de justificações, lamentações
Mecanismos formatados, sem Oriente, sem
Intuir da alma, onde à janela me posto
E me encontro, cinzento:
Pessoa que caminha sem ver. Doente:

Mão de ferro que bate na mesa
Aquilo que é da razão, sem alusão,
Sem sentimento, só equação de ser,
Geometrias da dor.

Choro uma tempestade, cá dentro
Onde existo sem cor de alguém,
Solução aquosa da aflição, do desalento
Onde me afogo lentamente, silenciosamente
Ao ritmo voraz dos gritos de quem ou quê
Me habita e me invade e me devora
Faculdades do amanhecer – manifestação do renascer
Livre da organização, o primeiro momento,
O primeiro antes de qualquer coisa, antes
Do entender.

Cerra-se o punho na mesa, grave
Sentimento obliterado que se afigura, agora
Matemático. Choro o padecer do meu ser em
Oriente.



quarta-feira, 17 de novembro de 2010

escrito IX

a separação
[23 de Novembro 1966, "Vera Cruz" parte com destino a Angola - campo militar do Grafanil, nos arredores de Luanda]


A madrugada estende-se de forma leve sobre o peito negro da noite. Tocam-se, diluem-se, amarram-se como dois amantes que se despedem num último beijo, numa última carícia, num último fôlego. Um instante, um pequeno instante, tão claro, tão lúcido, tão real. Tão curto. Choram uma despedida envolta no frio dos corações que adormecem exaustos, que se confortam num sono profundo, que se embalam em leves soluçares, que choram: chove. Um pequeno instante que os junta. Um pequeno instante que os separa. Um momento. Tão curto. A madrugada. Noite e dia.


Resolve-se um risco de luz no quarto.
A parede é agora riscada, é agora parede riscada;
Dizes, amo-te meu querido, amo-te para a eternidade.
A parede está riscada de luz, dizes, amo-te até morrer,
Olho a parede enquanto o dizes, amo-te amor, sussurraste.
Ainda te lembras? Usaste a palavra mais uma vez, amo-te mesmo muito.
A parede era agora uma mancha de luz, e tu sabias.
Olhei-te e encontramo-nos no mesmo olhar, tão cheio
Encontramo-nos e não houve qualquer palavra, ali, tão profunda
Não houve palavra para aquilo tudo, não.

Dançamos com o olhar um do outro, tu sabias
A parede erguia-se da penumbra, dançamos.
Lembro-me que sorrias, um sorriso de aguarela,
Um sorriso a duas cores, negro e branco, tu sabias e eu também.
Sabias-me no destino, nessa madrugada. Negro.
Amavas-me ali, sem palavras, amavas-me. Branco.
Um sorriso aguarela, lembro-me, e sabia-o assim
Cheio de dor porque tu, também
Vias a luz na parede;
Vias a hora chegar para me roubar de ti.
Mas sorrias, e sorrias para mim.

Lancei o meu corpo nu sobre o teu, abracei-te
Escondi o olhar húmido no teu ombro, beijaste-me.
Vai correr tudo bem, amor, beijaste-me.
Deixei-me entregue ao silêncio dos teus braços,
Ao momento, na tentativa de atrasar o tempo.
Olhei mais uma vez a parede, manchada, consumida pela luz.
Levantei-me e olhei-te, tu também a olhavas.

Não queria partir, mas nós os dois sabíamos disso.

Quebraste o silêncio, amor vai correr tudo bem, amo-te.
Tu sabias, eu sabia, o mundo sabia, a nossa dor.


terça-feira, 16 de novembro de 2010

escrito VIII

sentidos do amor
[Vai-nos minando o tempo, o tempo - o cancro enorme. Cesário Verde]


Sofia, 38 anos. Hugo, 40 anos.


Do silêncio entre duas pessoas. Cinzento: o mar, o céu. Esse grande horizonte que se confunde, que se enlaça: papel de cenário: o nosso. Ouço gaivotas gritarem loucuras, palavras soltas, declarações de amor, avisos de guerra, o tempo, o mar. Caminhamos, mas não falamos. Fingimo-nos distrair com a locomotiva que atravessa a praia, sob uma fina cortina de chuva. Caminhamos, mas não falas. As palavras parecem pequenos espinhos. Podia dizer-te tanta coisa. São tantas as coisas que deixamos de dizer. As palavras custam a sair, magoam. Não falo. Para trás ficam as nossas pegadas, lado a lado, pequenos vazios que deixamos na areia, a medo. Do silêncio entre duas pessoas, fica o incómodo dessa ausência que se espreguiça no corpo. Receio este nosso destino.


Daniel, 26 anos.

O que me queima, nem eu mesmo sei bem. Uma impossibilidade, por certo. Não sei. Um arrepio que queima. Adormeço na tontura de um pensamento teu só teu. Meu, por ser dentro de mim: teu. Imagino os ensaios possíveis entre os nossos nomes, e dói-me o córtex por tê-los assim, tão frágeis, tão longe da matéria das coisas claras, reais. Dói-me. Dói-me muito. Dói-me mesmo muito. Dói-me tanto: o platonismo das minhas gavetas, o quarto das minhas ficções, a janela que me olha com a realidade nos vidros. Um arrepio em negação. Tenho a paixão pelas coisas, nos olhos. Li há pouco tempo, que o cérebro recebe dois terços de todos os impulsos nervosos, através da visão. É essa, então, a proporção daquilo que me ocupas: a medida do meu olhar. Doem-me os olhos. Doem-me muito os olhos. Doem-me mesmo muito os olhos. Doem-me tanto: ver-te e não te poder contar desta inflamação, ver-te e não te poder tocar, ver-te e saber tudo isto impossível. e dói tanto.


Joana, 14 anos. David, 13 anos.

- Sabes ... amo-te! sussurrou Joana corando as maças do seu rosto
- Amor? Como sabes que me amas?
- Encosta o teu ouvido no meu coração e logo saberás ...
- Está bem! - david desenterrou os pés da areia molhada e logo se encostou contra o peito de joana - ouço apenas o teu coração a bater ... isso não é amar! disse numa inocente indignação de rapazinho enganado.
- Tens de ouvir com atenção ... shiuuuuu, assim não consegues - disse enquanto o abraçava docemente - a cada batida do meu coração podes ouvir o nascimento de uma nova estrela, em cada pausa um sorriso ansioso por te ter sempre comigo, e em cada ciclo todo o Universo a mover-se, pois é sinal que ainda te tenho e só assim este faz sentido.
David sorriu, agora ele também corado.
- Então, eu também te amo!


segunda-feira, 15 de novembro de 2010

escrito VII

o velho tonto e o tempo

Era conhecido como o velho, o velho tonto do oitenta e dois, segundo andar. Poucas vezes saía de casa, tão poucas vezes saía de si próprio. Todos os dias, todas as noites, deixava-se morrer na poltrona verde, gasta, usada: a poltrona dos dias de futebol, das reuniões entre amigos, dos domingos e das certezas que o envolviam, a poltrona das memórias: a família - o aguilhão do tempo. Os filhos, Luzia e Pedro, deixaram de aparecer. Os amigos de se interessar. Afinal, era um velho tolo, que se repetia, que se estranhava, que pouco ou nada dizia, que amava o tempo que já não era o dele. Ai velho tonto, as impossibilidades de te veres inteiro num mundo que te escoa, que te expurga como um cancro, que te obriga a viver no meio, entre as coisas do dia: entre o um e dois, o sim e não, o dentro e o fora, o horizonte e o céu, o inspirar e o expirar, o primeiro e segundo passo, a meia noite e o primeiro minuto do dia, entre dois olhares que se cruzam no acaso, o bem e o mal, a sorte e o azar, o doce e o amargo, a noite e o dia, o sono e o sonho, entre duas pessoas que se aproximam, a primeira e a segunda palavra, a luz e a escuridão, o coração e a razão, a coragem e a cobardia, entre a escolha e a decisão, o silêncio e ruído, a partida e a chegada, entre a mente sã e a loucura, o amor e o ódio, o autor e a obra, entre a vida e a morte, a morte e o nada. Meu deus, a intemporalidade. A mulher faleceu aos setenta anos, mas não naquele segundo andar, não para ele, nunca para ele. Tratava-a carinhosamente por mãe, recorda-se. Sorri. Foi no trinta e um de Janeiro de 2008, uma quinta-feira, que juntos, na cama, trocaram as últimas palavras: Maria, e que belos pequenos trouxemos nós ao mundo. Parece que ainda trago comigo o perfume daquele jardim, onde a medo te convidei para passeares comigo. O sorriso que carregavas quando viste o Pedro pela primeira vez, quando o ouviste pela primeira vez. E a Luzia, o bairro todo comentava a beleza que te herdou. Vencemos Maria, vencemos. Amo-te. As rugas da face, rangem a posição que lhes pertence, num direito ganho pelo peso de uma vida inteira. O sorriso que se dissipa na memória. a memória que se estende na arcada do seu corpo, e o empurra para dentro, para longe, para o silêncio que o viola - o interior do que está circunscrito na forma - para a incerteza das coisas. A decisão. O sonho impaciente de voltar a beijar Maria, de a ter nos braços, de a amar e contar-lhe da saudade, de juntos acompanharem os corações dos filhos. A decisão que se adensa: Maria. Duas pancadas secas na porta interrompem-lhe a acuidade. Quem é? - pergunta numa voz que lhe falha. Abre a porta. Parabéns Arménio: os filhos, os amigos, as cartas, o vinho: o aniversário que se esqueceu. O velho tonto sorri, sorri muito. O velho tonto sorri tanto. Lembraram-se, lembraram-se. Sorri. Chora. Que me esquecia de vocês. Já não vêm visitar o velhote. Senta-se na poltrona, velha, gasta, usada. Pai, estivemos aqui ontem, diz Luzia com o aperto na fala, com o aperto nos olhos para que não se escoem. O velho tonto olha para a janela em silêncio, não fala. O silêncio que o agarra. trocam-se olhares cabisbaixos na sala. Pedro agarra a mão do Pai, fria. Arménio volta-se e olha-o nos olhos. Pergunta-lhe quem é. Arménio chora. Arménio não sorri. Pedro abraça-o e diz-lhe baixinho, estamos aqui Pai, estamos aqui. Feliz aniversário. O velho tonto sorri-lhe, pareces-te com o meu filho Pedro. Queres jogar umas cartas? O meu filho é um excelente companheiro de jogo. Pedro sorri, diz-lhe que sim. Arménio sorri. Sorri muito.

No segundo andar do oitenta dois, o velho tonto diverte-se na sua poltrona com os filhos e os amigos. Arménio não escolheu o Alzheimer, mas nós podemos escolher não o abandonar. Em pequenos gestos, podemos fazer uma vida sorrir, mesmo que por breves instantes.


domingo, 14 de novembro de 2010

escrito VI

marioneta
[Bloco de matéria, preso a cordel, em mãos que não as minhas. ensaios.
]

Ficcionas-me nos teus teatros pessoais. Jogas-me. Prendes-me. Moves-me na imobilidade da minha vontade. Usas-me. Atiras-me. Chamas-me ao palco e aplaudes a coreografia que me obrigaste. Agarras-me. Violas-me com o olhar. Esvazias-me. Sujas-me. Tenho-me na sensação de já não ser, senão, uma extensão tua: marioneta. Forças-me a um sorriso, e dizes baixinho: amo-te. Magoas-me. Usas-me, amor. Gostas que te chame assim, amor. Amo-te, dizes. Amo-te. Amo-te. Amo-te. Amo-te. Amo-te. Amo-te. Amo-te. Amo-te. Amo-te. Amo-te. Desbastas-me com palavras usadas. Amo-te, sorris. Rasgas-me o corpo nessas verdades, esgotadas: ilusões. Amo-te. Não te respondo. Amarras-me, e segredas-me, se me abraçares no fim, dou-te a chave para a rua, não é isso que queres? Choro. Amarras-me. A corda queima-me os pulsos. Choro, e tu sorris. Sorris à ironia da situação. Usas-me enquanto sorris. Vá, abraça-me, berras. Os pulsos em sangue. A corda nos pulsos. Abraça-me, sorris. Não consigo soltar-me. Tu sabes que não. Ris enquanto me vês cada vez mais vazio. Usas-me. Serves-te de mim. Acabas. Murmuras, amo-te. Soltas-me. Desapareces na sombra, como todas as outras noites. Já não me chamas pelo nome. Na verdade, não nos falamos há muito tempo. Desapareces na sombra. O sal cristaliza-se na face. Já não choro. Morro. Todos os dias, morro um bocadinho. Odeio-te por isso. Sei onde guardas o revólver. Tenho-te raiva. Na caixa de sapatos. Seguro o revólver, gemo a emoção da vingança. Já me tiraste tudo. Que diferença faz? Desapareço na sombra. Chamo-te. Olhas-me. Olho-te. Dizemos tudo, ali, num olhar. A tua pele rosa-cançada, rosa-suada. Ardo por dentro. Ainda me doem os pulsos. Queres dizer-me alguma coisa, mas já nem sabes como se fala um sentimento. Mato-te, digo. Os teus olhos abrem-se em força. Mato-te, sorrio. O gatilho. O som grave da decisão. O som ensurdecedor da bala. O revólver no chão, fumegante. Olhas-me. Choras. Olhas-me, envolto no sangue que escorre do meu cérebro, doente de ti. Mato-te, disse-te. Mato-te aos bocadinhos, enquanto morro aos teus olhos. Mato-te devagarinho, lembra-te alguma coisa? Morro.

Soltam-se as linhas da noite,
Desliza o véu no horizonte, lentamente,
Soltam-se os pregos das linhas, levemente:

- Solver subtil da escuridão

Largada dos sonhos,
O despertar.

Sobriedade dos movimentos,
Tombar dos pensamentos, selvagens.
Cena primeira do imediato matutino,
Em palco de nomes,
Palco de caras, palco
De estrelas de cartaz,
Guiões para corações de chumbo,
Encenação de coisa alguma.

E eu, ficção de alguém,
Em película de papel:

- Às mãos de amassar.

[Aguardo-te no horizonte, noite, para que me possuas nos teus mistérios, e me livres das marionetas que me moldam a alma, e me cegam os olhos, no crude ardente da manhã.]




sábado, 13 de novembro de 2010

escrito V

dor.saudade

Sou dentro de mim, na imensa escuridão que me engole, na melancolia que me engole, na solidão que me engole, no luto que me engole. E sou tanto por dentro. E nada sou sem ti.

A noite faz-se sem cor. A rua não tem matiz. O vento, lava faces de quem se deixou arrumar no tempo, na rua, na calçada. As caras cinzentas: são blocos. Os corpos ordenados na rua, que se passeiam geometricamente, em padrões, em rotinas. Será que vens? Já não me lembro se era esta a hora marcada. As primeiras linhas de chuva arrumam-me a face, desordenada por não te ver. Será que me lembras? Eu lembro-te, neste mesmo banco, onde morrem as camélias, no chão. Não há cor no céu, não há cor na rua, somos todos a preto e branco, hoje, esta noite, hoje, na rua. O António passa por mim, acena-me com a cara. A chuva. Pergunta-me como estou, como estou por não estares. Espero-te no banco, onde morrem as camélias, onde morro contigo, na tua ausência. Pergunta-me se já foi o teu enterro. A chuva dilui o negro das minhas lágrimas. Será que vens? Quero tanto que voltes. Ainda me lembras? Quero tanto acreditar que sim, que me aguardas na eternidade. Não lhe respondo, choro-te. Quero tanto estar contigo, abraçar-te. Choro-te tanto. O António. As pessoas que trocam palavras soltas em torno de mim. Agarram-me o corpo. Os comprimidos: a ponte que nos separa. Lembro-te tanto. A vizinha do segundo direito, chora. Ouço as sirenes. Está tudo tão negro, sem cor. Os comprimidos. Esperas por mim?


sexta-feira, 12 de novembro de 2010

escrito IV

verdades que se escondem debaixo do tapete

Domingo, o dia das luxúrias. A manhã faz-se quente. Algumas cartolas descem imperialmente a calçada da praça central para comprarem o jornal. À porta da Igreja, exibindo as novas colecções de domingo, falam as senhoras: são montras. Entrecruzam olhares sedentos de intrigas, de intenções. Os miúdos jogam à bola. As raparigas desenham casas na terra molhada. Nove da manhã. É domingo na vila, nos edifícios, nas pessoas, nas rotinas. É tudo normal. Os miúdos param de jogar á bola. É quase tudo normal. As casas desenhadas na terra, abandonadas. A casa amarela grita. Dois tiros.

Oito da manhã. Madalena olha-se no espelho. No quarto, a luz matutina risca a parede. O reflexo de madalena: rosado. A face brilha a manhã que se faz senhora no rosto de uma menina. Hoje é dia de viagem. Vamos à cidade, pensa enquanto amarra o cabelo com uma flor que apanhou no jardim. Sorri. A flor que segura o cabelo. O cabelo que segura um sorriso. O sorriso que segura uma ideia: a feira popular. O espelho que segura uma face. A face que segura a manhã, que reflecte: um sorriso: uma ideia: uma viagem: a feira popular, vou comer algodão doce. O andar de baixo chora. Madalena desce as escadas devagarinho. O pai. A mão do pai na cara da mamã, vermelha. A outra mão bêbada, fechada, no corpo da mamã, encolhido. Madalena grita. Corre. Agarra a mamã. Choram. Pára, grita Madalena. A mão pesada que agarra os cabelos da filha, que a atira. A flor no chão. A mãe grita. As pétalas brancas no chão, na sala. Chora-se e grita-se no andar de baixo. O revólver. O tiro. O sangue no chão. A flor é agora manchada. O corpo da mãe no chão. Silêncio. Os joelhos do pai, no chão. O revólver na mão bêbada do pai. O dedo no gatilho. O tiro. O corpo do pai no chão. As lágrimas de Madalena diluem o sangue, na cara. A manhã morre na face de Madalena. Agarra-se ao corpo da mamã. Chora. Soluça. Adormece.

A casa amarela cala-se. A vila grita.

Vinte anos depois, Madalena chora na campa da mamã. Os filhos olham a fotografia da avó. Era tão bonita, mamã. Madalena abraça os filhos. Chora. Choram. João e Mariana choram sem saber porquê. Mas a mamã chora. Choram. Domingo. Já não há feira popular na cidade. A vila, as pessoas, os edifícios, as rotinas, são as mesmas. Madalena mudou. A casa amarela é azul e tem janelas verdes. Existem muitas Madalenas no mundo.


quinta-feira, 11 de novembro de 2010

escrito III

entreacto

Alinham-se os passos de alguém, na sala - descobrem. Tropeçam olhares nas vozes, que morrem, no silêncio de um canto. Bradam-se palavras, no centro, debaixo das grandes luzes, no aperto da fala. Nas mesas para dois, o licor e o cigarro, de alguém que pensa sozinho. À janela, escreve o escritor, palavras romanceadas, frustrações mudas por não se ver fora de si mesmo. O pianista transpira uma pausa, uma renda em atraso, não pode parar. As duas velhinhas da rua vinte e quatro, ouvem-no, recordam o tempo dos maridos, na guerra - a perda que as consome. O homem rico das indústrias do carvão, fita as crianças, negras de fumo, a brincar lá fora. Não pensa, não quer pensar. A prostituta, arruma as coisas da noite na carteira, também não quer pensar. Pede um café. O empregado de mesa, Olívio, acena que sim. Um simples sim, ensaiado pela fadiga da repetição.

Ao som do piano, balanceiam-se vidas, silêncios impermeáveis que se resguardam do enxofre lá de fora - a realidade que os absorve. A tarde termina, e eles sabem, é preciso despertar - o café vai fechar.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

escrito II

tempos de crise


Sapateiro. Rua das camélias. Primavera. Guilherme alinha os passos das pessoas, na oficina. Do trisavô para o avô, do avô para o pai, do pai para o filho: Guilherme aprendeu a arte da genealogia, apertou as mãos do passado. Tem tido muito trabalho. Agora é só ele, sozinho. O pai mudou de direcção, vive na rua das chaminés, número trezentos, campa dezanove. O filho de Guilherme, José, não se interessa muito pelo ofício. Passa o tempo agarrado aos livros, quer ser escritor. Ontem, pintor. Anteontem, actor de cinema. A leveza de não ser, ainda, realmente nada. Adelaide, mãe, mulher, faz costura em casa. Maria, filha, irmã, foi com José comprar carne para o almoço. Guilherme liga o rádio, na oficina. Estremece o corpo. Quinta-feira. Desliga o rádio, fecha mais cedo a oficina. Corre. Corre e não olha para trás. Na rua das Camélias, correm as outras pessoas. Fogem de uma notícia, para casa, para os braços da família. Guilherme aguarda o eléctrico, tremem-lhe as pernas. O tempo não é tempo, ali, na paragem. O tempo é o peso de três pessoas no peito: a família. A guerra chegou.

Em tempos de crise enchemos o peito com os que nos são próximos: vivem dentro de nós. Respiramos. Respiramo-nos



terça-feira, 9 de novembro de 2010

escrito I

O que realmente importa

Agora tenho 60. O frio atravessa a minha pele estragada, esfregada pelo tempo, velha, permeável. Pergunto-me se sou feliz. Sei que não existe chave para o baú que guarda a resposta. Imagino todos os momentos que ficaram, que me acompanharam - no fundo, que me enchem - e são sorrisos, e são olhos fechados em profunda tristeza. Paro. Grito. Grito tão alto, que perco o folgo, que fico tonto.

Lembro-me de todos os nomes que ouvi, todas as faces, todos os olhares, todas as palavras, todos os abraços, todos os beijos. Lembro-me tão bem, tão intensamente que desejava não me lembrar. Lembro-me, mas só dos que me fizeram. Os que ficaram - e amo-os - os que nunca mais vi - e queimam-me o peito na ausência - os que nunca mais senti - e desejo a morte a dor tão insuportável do que nunca mais ser para quem amamos - os de quem me separei - e mereço o orgulho que me queima sem descanso, sem misericórdia - os que vi partir - e ainda hoje sinto-lhes o odor, sinto-os e choro. Olho para mim e sei que não valho por mim mesmo. Que só, sou tão invisível como a lua nova na noite. E sorrio porque assim sei que sou Homem. Porque sinto. O que realmente importa não sou eu, nunca fui, sendo-o sempre. É uma parábola imensa. Uma valência. Uma combinação. Uma balança.

Hoje tenho 60, e não os tenho na realidade, sei-o bem. E quem me conhece também o sabe. E quem não me conhece, pode imaginá-lo. Hoje sei a importância das coisas, mas antes também o sabia. Embora o saber não ocupe lugar, por si só não nos impede de cometer erros. Porque os cometi, cometo, cometerei. Eu não gosto de errar, ainda assim existe esse espaço nas coisas. Os pensamentos atravessam a minha pele estragada, esfregada pelo tempo, velha, permeável.

Eu sei o que realmente importa. E quando o que me vale esvanece, fico velho.